29.6.07

Os paradoxos da minha fé (Parte 3): História

Os paradoxos de minha fé afirmam que:
. Deus escreve a história através das mãos humanas
. Deus age soberanamente levando em conta a liberdade humana
. Deus conhece os fatos que ainda não aconteceram

A pergunta a respeito da relevância destas afirmações para a vida e o relacionamento com Deus e a caminhada no discipulado de Cristo deve ser respondida à luz do paradigma da kenosis. Isto é, o conceito de kenosis me coloca diante da necessidade de viver baseado na segunda metade de cada uma destas afirmações. Nesse caso, o que compete a Deus, fica sob o cuidado de Deus, pois ocupa o espaço do imponderável para minha consciência e compreensão, e não depende de minha vontade ou ação. Devo viver tendo como referência aquilo de que estou consciente e que compreendo e, principalmente, assumindo a responsabilidade daquilo que em boa medida depende de mim.

Creio que Deus escreve a história, agindo soberanamente, e inclusive conhece o que ainda não está escrito. Mas isso, em relação à minha consciência está na categoria do mistério, do imponderável. No meu horizonte de consciência e influência está o fato de que Deus se utiliza de mãos humanas, respeita a liberdade humana, e os fatos ainda não aconteceram. Por esta razão, vivo agindo livremente para construir o futuro em cooperação com Deus. Com licença da expressão, o que Deus está escrevendo, ou fazendo, e o que sabe a respeito do futuro, é problema dele. O meu problema é o que eu estou fazendo, a maneira como uso minha liberdade, e que tipo de futuro existiria se tudo dependesse apenas das minhas escolhas e decisões.

Talvez você pergunte o que tem a kenosis a ver com isso? Respondo que tem tudo a ver, pois a kenosis estabelece o padrão para o relacionamento de Deus comigo. Leio a Bíblia Sagrada como o registro autoritativo da revelação de Deus: quem Deus é – seu caráter, mente e coração, como deseja se relacionar comigo, e como me inclui nEle mesmo e em seu propósito eterno. Leio a Bíblia como o relato de uma grande história na qual Deus vai se desvendando através de seus relacionamentos. E nestes relacionamentos, seja com algumas pessoas específicas ou com uma nação, percebo que o que conta de fato para aqueles que com Ele se relacionam não é sua ação soberana e nem mesmo seu conhecimento do futuro, mas sua grandeza em andar na velocidade destas pessoas. Deus cede espaço para que as pessoas escrevam capítulos de sua história, mesmo incluindo páginas que Ele jamais incluiria; respeita a liberdade dos seus colaboradores; e age como se não tivesse qualquer conhecimento do futuro, fazendo com que seus colaboradores acreditassem naquilo que de fato é: o futuro está sendo construído inclusive por suas escolhas e decisões – Deus não está brincando de liberdade e nem fingindo que as pessoas têm papel preponderante no processo histórico. Deus não se relaciona com marionetes.

Esta postura me coloca diante de um paradoxo: morro de medo de fazer besteira e colocar a história em trilhos não aprovados por Deus, mas ao mesmo tempo acredito de todo o coração que não importa em que trilho eu coloque a história, o destino final está garantido, não por mim, mas por Deus, senhor da história. Em outras palavras, morro de medo de não chegar em Canaã, mas não tenho a menor dúvida de que alguém vai chegar lá.

Para caminhar entre estas duas possibilidades sem enlouquecer, apelo para o Espírito Santo, o Deus em trânsito. Isto me leva à quarta parte dos paradoxos da minha fé.

28.6.07

Os paradoxos da minha fé (Parte 2): Kenosis

No Concílio de Nicéia (325 d.C.), sob o imperador Constantino, e no primeiro Concílio de Constantinopla (381 d.C.), se o consenso de que Cristo era eterno, uma encarnação divina, (chamada de "homoousios"), que significa consubstancial com Deus Pai, em uma só pessoa, porém com duas naturezas - completamente divina e completamente humana - e propósitos.

"O termo KENOSIS (ke/nwse - ekénose) que significa esvaziamento, é encontrado no Novo Testamento como o esvaziamento de Jesus (Fl 2,7), esta relacionado a sua divindade, mas precisamente ao deixar de lado seus atributos divinos sem perder sua natureza divina. Jesus deixa de depender de seu poder divino para depender do Espírito Santo". A definição é simples, mas serve.

A discussão ao redor da kenosis de Jesus está no contexto das disputas cristológicas, que debate a natureza de Jesus Cristo durante os primeiros séculos do Cristianismo, e gira ao redor do objeto do esvaziamento, ou, o que foi que Jesus deixou no céu ao descer para a terra?

No emaranhado de heresias históricas a respeito, há pelo menos duas possibilidades de explicação da kenosis: esvaziamento na forma e nos atributos. Jesus é Deus esvaziado dos atributos próprios de sua divindade (onipotência, onipresença e onisciência), embora intocado em sua natureza divina (eternidade e santidade). Isso implica dizer que o esvaziamento de Deus em Jesus não diz respeito à natureza de Deus. Deus é o mesmo, antes e depois de sua kenosis. Podemos considerar a kenosis, portanto, um critério de relação de Deus com sua criação e suas criaturas.

Creio que Deus conduz a história independentemente de sua kenosis, mas entra na história sempre esvaziado, através de Jesus. Apenas para diferenciar os critérios de relacionamento de Deus com sua criação e suas criaturas, falemos do Deus exaltado (sem kenosis) e do Deus esvaziado, em Jesus (com kenosis). Deus conduz a história desde seu alto e sublime trono, Deus exaltado, mas participa da história em Jesus, o Deus esvaziado . Estes são os sentidos das chamadas teofanias: a presença de Deus, em Jesus, no Velho Testamento, antes da encarnação.

Aqui surge um mistério: existe kenosis antes da encarnação. Somente o Deus esvaziado se manifestaria no tempo e seria passível de ser percebido por suas criaturas. O Deus em seu alto e sublime trono habita em luz inacessível (1Timóteo 6.16), e não pode ser contemplado pelo mortal.

Por esta razão, quando Moisés solicita que Deus lhe mostre sua glória, Deus lhe concede ver sua bondade: "Eu farei passar toda a minha bondade por diante de ti", pois "Não poderás ver a minha face, porquanto homem nenhum verá a minha face, e viverá" (Êxodo 33.20).

O Deus que precisa descer para saber o que se passa em Babel (Gênesis 11.5), verificar a pertinência das acusações feitas contra Sodoma e Gomorra (Gênesis 18.20 ,21), e colocar Abraão à prova (Gênesis 22.12) é o Deus esvaziado em Jesus. Dizer que tais expressões são meras figuras de linguagem implica a diminuição da verdade bíblica. Estes não são exemplos de antropomorfismo como figura de linguagem, mas de antropomorfismo como kenosis, pois o Deus que participa da história é o Deus esvaziado em Jesus.

Podemos concordar com Ariovaldo Ramos quando diz que em Filipenses 2 há, portanto, duas kenosis.. A primeira é Deus em forma de servo (a kenosis antes da encarnação): deus se esvazia para incluir a humanidade em si mesmo, diminui-se para que o finito conviva com o eterno sem ser esmagado pela eternidade e pela glória do Eterno; a segunda é Deus em forma humana (a kenosis da encarnação): Deus se esvazia para se identificar em termos absolutos com a humanidade (Hebreus 4.15,16; 10.5) e para conduzir a humanidade à participação em sua natureza divina (2Pedro 1.4).

Os grandes conflitos da espiritualidade cristã consistem no desejo humano de conviver aqui e agora com o Deus exaltado, negligenciando todas as possibilidades de convivência com o Deus esvaziado.

A maioria das pessoas quer um Deus exaltado: onipotente, onipresente e onisciente, que invade a história com seu poder e autoridade e interfere na realidade em benefício dos seus. A proposta cristã, entretanto, é um convite ao seguimento do Deus esvaziado, que habita nos seus através do Espírito Santo. Sua forma de atuação não é a intervenção que perpetua a imaturidade, mas a cooperação que convida à emancipação e autonomia.

Quanto tempo será necessário para que os cristãos assumam que o Deus exaltado continua a agir na história como Deus esvaziado? Este é o tempo de afirmação da terceira kenosis: o esvaziamento de Deus para habitar sua igreja: Deus age em nós, através de nós, apesar de nós, e nos dá o privilégio de cooperar com Ele em sua obra de redenção (João 14.16-23; 1Coríntios 3.16; 6.19; 12.4-7; Efésios 2.20-22; 1Pedro 2.4-6; Apocalipse 21.3).

21.6.07

Emerging church?

Bastou que ficassem sabendo que eu estava lendo Brian McLaren e Rob Bell para perguntarem se eu havia aderido ao “emerging church”, ou “igreja emergente”, um movimento que nas duas últimas décadas vem ganhando corpo na igreja evangélica, especialmente de fala inglesa.[1] Você agora é do Emerging church?, querem saber. A pergunta é típica de quem gosta ou precisa rotular pessoas, e muito peculiar à realidade evangélica brasileira que vive de modas do tipo agora é isso, agora é aquilo. De minha parte, sigo o que recomenda o apóstolo Paulo: examino tudo para tentar reter o que é bom. Interessante como tem gente que confunde investigação com adesão.

Por trás da pergunta existe também uma certa ignorância a respeito do movimento emerging church. Primeiro, porque o movimento é recente e ainda não está consolidado em suas bases teóricas. Mas também pelo próprio espírito do movimento que visa romper com o dogmatismo da modernidade e abrir um diálogo mais aberto e inclusivo no contexto da chamada pós-modernidade. Dentre tantas tentativas de enquadramaento do movimento, opto por seguir o conceito de Brian McLaren:

“What are we in the so-called emerging churches seeking to emerge from? We are seeking to emerge from modern Western Christianity, from Colonial Christianity as a white man’s religion”.[2]

Em outras palavras, a igreja emergente está emergindo de onde ou de que? De acordo com McLaren, da cultura e mentalidade modernas e do imperialismo religioso anglo-americano. Isso fica mais claro quando McLaren confessa que o Emerging church está atrasado:

“African and African American Christians (Black theology) and Latin American Christians (liberation theology and integral missiology) have been hitting these themes with intelligence and passion for decades, but few of us listened to their spokespeople, whether it was Dr. King or Desmond Tutu, Gustavo Gutierrez or René Padilla”.[3]

Agora sim posso responder se estou no Emerging church. Estou sim. Desde 1983 quando li René Padilla pela primeira vez. E depois continuei lendo: a série Lausanne,[4] Richard Shaull, Orlando Costas, Samuel Escobar, Robinson Cavalcanti, Severino Croatto, Norberto Saracco, Harold Segura, Pedro Arana, os irmãos Leonardo e Clodovis Boff, José Comblin, e mais recentemente, Frans Hinkelarmmert, Hugo Assmmann, Jung Mo Sung, Juan Luis Segundo, Jon Sobrino e André Queiruga.

Há mais de 20 anos estou mergulhado no universo de pensamento onde o labor teológico acontece não apenas nas categorias da filosofia clássica, do padrão racionalista da modernidade, e do horizonte de reflexão norte-americano. Há vida, teologia, e eclesiologia fora do eixo do primeiro mundo. Há inteligência entre os pensadores que falam os dialetos africanos, o espanhol e o português. Existem casas de profetas longe de Dallas, Atlanta e Los Angeles. Pena que as editoras cristãs evangélicas sejam casas tradutoras dos que falam apenas inglês.

Oxalá o Emerging church se torne mais do que uma tentativa de dialogar com a pós-modernidade e um rompimento com o etnocentrismo anglo-americano. Oxalá o primeiro mundo ouça o suspiro dos oprimidos e considere fazer teologia para responder também ao sofrimento do corpo e não apenas às angústias da mente. Oxalá o mercado evangélico publique o que vale a pena ser lido e não o que vende. Oxalá os teólogos acadêmicos ocupem-se não somente com a ortodoxia, mas também com a práxis cristã. Oxalá os pensadores do Emerging church tirem o atraso – são benvindos em nossa estrada. Oxalá sigamos todos cobertos pela poeira dos pés de Jesus.


[1] Você pode encontrar mais informações em:
Scot McKnight. Five Streams of the Emerging Church, In:
http://www.christianitytoday.com/ct/2007/february/11.35.html;
Michael Edward. An emerging Christianity,
In:
http://emergingchurch.info/reflection/michaeledward/index.htm.07;
http://igrejaemergente.blogspot.com.
http://www.emergentvillage.com
[2] McLaren, Brian. Church emerging. In: Paggit, Doug e Jones, Tonny. An emergent manifesto of hope. Grand Rapids, MI: Baker Books, 2007, p. 149.
[3] Idem. p. 147.
[4] Congresso Mundial de Evangelização realizado em 1974 na cidade de Lausanne, Suíça, e que deu origem ao “Pacto de Lausanne”, que sintetizou a missão integral da igreja como “o evangelho todo, para o homem todo, para todos os homens”.

14.6.07

Os paradoxos da minha fé (Parte 1)

Creio porque é absurdo.
Tertuliano (155-220)

Paradoxo é aparente falta de nexo ou de lógica, algo que contém uma contradição. Isso faz lembrar a história do Rebe Benjamin, chamado para arbitrar um litígio. Ouviu o primeiro reclamante e disse: “Você tem razão”. Ouviu também o segundo reclamante e deu o mesmo parecer: “Você tem razão”. Sua esposa sara, tendo ouvido a conversa, depois que os reclamantes saíram furiosos, comentou com o Rebe: “Perdão, meu senhor, mas não creio que dois homens que discordam entre si podem estar igualmente certos”, ao que o Rebe Benjamin retrucou: “Você tem razão”.

Somente quem transita bem no mundo dos paradoxos compreende como dois homens que discordam entre si podem estar igualmente certos. A maioria das pessoas, entretanto, raciocina em termos de lógicas simples, do tipo “se eu estou falando a verdade, então ele está mentindo” ou “se você está certo, então estou enganado”. Leonardo Boff adverte, entretanto, que “todo ponto de vista é a vista de um ponto”. E justamente por isso, naquela história, quem tem mesmo razão é o Rebe.

Carlos Mesters disse que “a distância que vai entre a janela e os meus olhos determina o que vejo lá fora na rua. Se fico mais perto, a visão se alarga; se fico de longe, a visão se estreita. Se vou à esquerda, enxergo a praça; se vou à direita, enxergo a torre. Sou eu que determino o que aparece lá fora na rua para servir de panorama aos meus olhos. Mas nem por isso é falso ou errado aquilo que vejo e descrevo, pois não sou eu que crio as coisas que aparecem lá fora. Já existiam antes de mim. Não dependem de mim. É útil e até necessário que cada um defina bem clara e honestamente aquilo que vê pela sua janela. Isso redundará em benefício da análise que se faz da realidade da vida. O que me consola é que todos somos assim. Bem limitados e condicionados pelos próprios olhos, dependentes uns dos outros. É trocando as experiências, numa conversa franca e humilde, que nos ajudamos a enxergar melhor as coisas que vemos, e a romper as barreiras que nos separam sem razão. Pois ninguém é dono da verdade. Intérprete só”.

Com Mesters aprendemos que nenhuma teologia pode reivindicar ser a detentora da verdade. Até porque o próprio conceito de teologia é paradoxal. Tomando como correta a definição de Frei Betto: “teologia é o esforço racional de apropriação das verdades de fé”, ficamos diante do paradoxo: sendo verdade de fé extrapola a apropriação racional; sendo apropriação racional prescinde de fé. Por esta razão, o Cristianismo não depende da ortodoxia, mas da revelação. A ortodoxia é uma teologia elevada à categoria de verdade absoluta. A revelação é o encontro com uma pessoa. Uma pessoa que não cabe nem na teologia nem na ortodoxia. Uma pessoa é sempre um paradoxo (perdoe o sempre).

Nos últimos tempos estou ocupado em teologizar a respeito da relação entre Deus e os homens na construção da história, a relação entre soberania de Deus e liberdade humana, e a relação de Deus com o tempo e a eternidade. Este é o meu esforço pessoal de tentar conjugar a realidade vivencial, o registro da revelação e uma lógica mínima que faça com que as duas coisas convivam coerentemente. Eis aí três campos que consigo compreender apenas em termos de aparentes paradoxos.

1- Deus escreve a história através de mãos humanas

Esta afirmação pode ser uma paráfrase do Salmo 77.20: Deus guiou seu povo pelas mãos de Moisés e de Arão. O que nos faz lembrar a expressão impressa nos adesivos dos carros dos cristãos piedosos: “Guiado por Deus, dirigido por mim”. O paradoxo está posto: se de Deus escreve a história então as mãos humanas não são livres. Mas se as mãos humanas são livres, não é Deus quem escreve a história. Alguém poderia objetar que isso não é um paradoxo, pois não há necessária contradição aparente: as mãos humanas podem ser manipuladas pelas mãos de Deus, como o pai que segura a mão do filho para ajudá-lo a escrever. Mas não é esse o espírito da expressão. A questão por trás quer saber se a história é escrita a quatro mãos ou duas, as de Deus. Ou mesmo, se os rabiscos humanos no papel exigem de Deus providências para que a obra final não seja estragada. Em outras palavras: a atuação humana na história obriga Deus a necessariamente refazer seus caminhos? Abre parêntesis. Incluo a palavra “necessariamente” por acreditar na real possibilidade de que as mãos humanas façam o que Deus faria, e nesse caso, Deus não precisa refazer seus caminhos. Fecha parêntesis.

A narrativa bíblica registra pelo menos três exemplos da liberdade humana impondo limites à atuação de Deus, ou, exemplos de como Deus precisa fazer curvas para voltar ao rumo dos seus propósitos, ou ainda, exemplos de como Deus escreve a história através de mãos humanas: a posse da terra prometida, a escolha de um rei para Israel, e a construção do templo em Jerusalém.

O trajeto entre o Egito e a terra prometida duraria aproximadamente três meses, mas o povo de Israel demorou 40 anos para entrar em Canaã. A razão é simples: a primeira geração que saiu do Egito se acovardou diante dos ocupantes da terra e se recusou a entrar. Dos doze espias enviados para sondar a terra, somente Josué e Calebe demonstraram disposição de fé para tomar posse da promessa feita por Deus. O resultado foi que Deus decidiu colocar o povo em marcha pelo deserto, esperar a primeira geração morrer, e dar uma nova oportunidade para Israel. Caso a segunda geração se acovardasse, provavelmente a peregrinação pelo deserto se prolongaria. Mas a segunda geração não se acovardou. Deus fez um conclave para nova celebração da Lei (por esta razão Deuteronômio 5 repete Êxodo 20) e delegou a Josué a função outrora exercida por Moisés. Em outras palavras, Deus demorou 40 anos para avançar o que poderia ter avançado em três meses.

No tempo em que Samuel era sacerdote e profeta em Israel, o povo pediu um rei, à exemplo de todas as outras nações. Samuel não gostou da idéia e foi chorar diante de Deus. Deus consolou Samuel dizendo que “eles não te rejeitam como sacerdote e profeta, mas a mim como Deus”. Deus esclarece ao povo as implicações de ter um rei e adverte que a idéia não é boa, mas, mesmo assim, aquiesce ao pedido e concede um rei a Israel: Saul. A sucessão de reinados divide o povo, separando dez tribos de um lado (Reino do Norte = Israel, cuja capital era Samaria) e duas tribos (Judá e Benjamim) de outro (Reino do Sul = Judá, cuja capital era Jerusalém). Foram mais de 600 anos de sofrimento para Israel (120 anos de reino unido e 400 anos de reinos do norte e sul), dando a Deus o trabalho de disciplinar o povo (fim do reino do Norte, conquistado pela Assíria no século VII a.C., e 70 anos de cativeiro do reino do Sul sob a domínio Babilônico no século V a.C.) e fazer nascer o Messias, que entraria em Jerusalém aclamado como o filho de Davi. Em outras palavras, Deus faz uma tremenda curva para suscitar a semente de Abraão, preservando a descendência de Judá, um dos filhos de Isaque.

O mesmo fenômeno ocorre em relação ao templo de Jerusalém. Num de seus momentos de ócio na varanda do palácio (num deles Davi viu Bateseba e você conhece a história), o rei Davi teve a brilhante idéia de construir um templo para o Deus de Israel, afinal os deuses das outras nações tinham onde morar e o Deus de Israel era um sem-teto, isto é, um com-barraca – o Tabernáculo. Natã adverte Davi afirmando que Deus jamais solicitará um templo, mas mesma assim Davi decide levar adiante seu projeto, acreditando estar fazendo algo para glorificar a Deus. Deus então decide acolher a oferta de Davi, assume o compromisso de ouvir as orações naquele templo, e a partir de então o templo de Jerusalém é incluído no processo histórico da redenção – a mesma coisa que ocorre com o rei e os estados-nações. Quando Jesus de Nazaré entra em cena, Deus faz um esforço tremendo para desmontar a figura do templo e incluir novamente a figura do Tabernáculo: em Jesus, Deus tabernaculou entre nós, pois o Filho do Homem, diferentemente dos passarinhos, não tinha endereço fixo.

A afirmação de que Deus não está brincando de liberdade é tão real que através do profeta Deus mesmo expressa uma frustração. Falando a respeito de seu cuidado para com o povo de Israel, que compara a uma vinha, afirma ter feito de tudo para colher uvas boas, mas as uvas foram amargas (Isaías 5), o que o faz exclamar em puro espanto que não conseguia entender como as pessoas poderiam preferir a água enlameada da chuva às águas cristalinas do manancial (Jeremias 2.12,13).

Também por esta razão creio que Deus não tem planos, mas propósitos. A realização cabal dos propósitos de Deus está garantida pelo fato de Deus ser soberano, enquanto as idas e vindas dos planos de Deus são necessárias em razão da liberdade humana.

Os três exemplos citados ilustram como Deus, para garantir a concretização de seus propósitos, redesenha seus planos em virtude das ações livres do homem. Mas você perguntaria onde está paradoxo, pois até agora não há nenhuma aparente contradição no fato de Deus permitir que a história se desenrole a partir das escolhas livres do homem. Por enquanto, o homem age e Deus reage. A questão é que essa não é toda a verdade. A verdade completa inclui a ação soberana de Deus em paralelo à ação livre do homem. Como pode ser isso, você perguntaria. A resposta pode ser desenhada partir de três outros exemplos: a saga de José do Egito, a rebeldia de Faraó, e a morte de Jesus Cristo.

2- Deus age soberanamente levando em conta a liberdade humana

Alguém diria que o paradoxo da afirmação consiste no fato de que se Deus age soberanamente, a ação humana não é livre, e se a ação humana é livre, Deus não é soberano ou não pode agir soberanamente.

Esta aparente contradição poderia ser desfeita por uma simples redefinição de soberania. Entendo soberania como a crença de que nada pode impedir Deus de executar sua vontade a não ser Ele mesmo, Deus.

A aparente contradição poderia ser desmontada também pela afirmação de que a soberania de Deus não anula a liberdade humana. Por exemplo, lá em caso sou soberano em relação aos meus filhos, mas isso não impede meus filhos de agirem livremente. Isso se aplica à relação entre Deus e o homem quando Deus soberanamente escolhe como usar sua soberania. Isto é, considerando que Deus soberanamente escolheu outorgar liberdade ao humano, esta liberdade humana em nada anula a soberania de Deus: o homem é livre porque Deus quer, e não porque Deus foi destituído de sua soberania.

Particularmente, acredito ter afirmado o óbvio. Mas os nossos óbvios não são necessariamente óbvios para os outros. Além disso, os nossos óbvios podem parecer simplistas em relação aos óbvios dos outros. Ou mais do que isso, os nossos óbvios podem sugerir covardia e fuga do debate aos olhos dos outros. Por esta razão, convém entender melhor como a soberania de Deus convive com a liberdade humana, e vice-versa.

Deus não está brincando de liberdade. A decisão divina em outorgar liberdade humana implica que Deus escolheu livre e soberanamente limitar sua atuação, visando dar espaço para a existência do homem e possibilitar sua convivência com ele.

José era um dos doze filhos de Jacó (cujo nome fora mudado para Israel), que dá origem às Doze Tribos de Israel. Sonhador, acreditava que Deus o havia escolhido para governar a família: os pais e os irmãos ainda se prostrariam diante dele reconhecendo sua grandeza. Evidentemente, os irmãos mais velhos detestaram a profecia e decidiram se livrar de José. Após uma razoável tramóia, José foi vendido pelos seus irmãos aos mercadores de escravos e foi parar no Egito. A Bíblia diz que “a mão de Deus era com José”, de modo que ele prosperou e se tornou uma espécie de primeiro ministro do Egito, com autoridade inferior apenas à do Faraó. Sua ascensão se deveu às interpretações de sonhos, especialmente a respeito das vacas magras e gordas, representavam sete anos de fartura e sete de fome. Orientou o faraó a armazenar no tempo da fartura para que se tivesse provisão no tempo da fome. Deu certo. Foi assim, fugindo da fome, que seus irmãos chegaram ao Egito e descobriram que o menino mimado vendido aos mercadores de escravos se tornara nada mais nada menos que o segundo homem mais poderoso do mundo de então. Diante dos irmãos perplexos, que faziam seu mea culpa entre lágrimas e desespero, José sai com a seguinte declaração: “não foram vocês quem me enviaram para cá, mas Deus”, pois “vocês intentaram fazer o mal contra mim, mas Deus o tornou em bem, não para minha própria satisfação, mas como instrumento para salvar a vida de muitos”.

Passados muitos anos, sobe ao trono um Faraó que jamais ouvira a história de José, e desconhecia que o povo israelita era sua descendência (israelita é o descendente do pai de José, Jacó, cujo nome foi trocado para Israel). Temendo pela segurança de seu reinado, em razão do aumento populacional do povo, o Faraó decide impor sobre os israelitas uma escravidão desumana (perdoe o pleonasmo). O povo escravizado clama ao Deus de Abraão, Isaque e Jacó (Israel), que vocaciona Moisés como libertador. Moisés é enviado por Deus para negociar com o Faraó a libertação dos israelitas, mas o Faraó age obstinadamente impedindo o êxodo do povo. Deus age com braço forte e retira os israelitas do Egito após submeter os egípcios às duras penas das dez pragas. Os descendentes de Abraão, Isaque e Jacó, o povo que carregaria pela história o ventre prenhe do Messias prometido, nasce sob o signo da libertação. Mais adiante ficamos sabendo que tudo isso havia sido articulado por Deus: os sonhos de José, a venda de José como escravo no Egito, o sonho do Faraó interpretado por José, os anos de fartura e fome, a imigração da família de José para o Egito, os anos de escravidão, e, pasmem os senhores, o coração endurecido de Faraó, que pensava agir de livre vontade, mas obedecia um scripit elaborado por Deus.

O Messias nasce, cresce, anda por toda parte fazendo o bem, é rejeitado e traído pelo seu povo – a descendência de Israel, é preso sob acusação de sedição, morre na cruz do Calvário e ressuscita ao terceiro dia. No dia da festa do Pentecoste, celebrada anualmente pelos israelitas no 50º dia após a festa da Páscoa, Pedro, um dos chamados 12 apóstolos discípulos de Jesus, explica o advento Cristo e o derramar do Espírito Santo com as seguintes palavras: “vocês assassinaram Jesus de Nazaré, mas saibam que ele foi morto porque Deus assim planejou, e por esta razão o trouxe de volta da morte e o fez Senhor e Cristo (Messias)”. Parece que Pedro tinha boa memória, pois Jesus já havia dito que sua morte seria um assassinato, mas sua vida não lhe seria arrancada das mãos, pois será doada livremente.

Aí está um grande paradoxo: Deus age soberanamente levando em conta a liberdade humana. A saga de José é ao mesmo tempo resultado da ação livre de seus irmãos e da ação soberana de Deus; a rebeldia de Faraó é ao mesmo tempo uma ação livre do opressor de Israel como ação soberana do Deus de Israel; a morte de Jesus de Nazaré é ao mesmo tempo assassinato e auto-doação, ação livre dos homens e cumprimento do propósito eterno de Deus.

3- Deus conhece os fatos que ainda não aconteceram

O paradoxo consiste no seguinte: sendo fatos, fazem parte do passado, mas se ainda não aconteceram, fazem parte do futuro. Esse é o grande tema em debate no Teísmo Aberto.
O Teísmo Aberto afirma que Deus decidiu criar um universo no qual o futuro não pode ser totalmente conhecido, até mesmo por Ele, Deus. Para muitos adeptos do teísmo aberto o futuro não é uma realidade, isto é, ainda não existe, e Deus conhece apenas o que existe para ser conhecido. Este ponto de vista é chamado de “onisciência dinâmica”, onde o conhecimento de Deus a respeito do futuro é parcial, pois o futuro está parcialmente definido (fechado) e parcialmente indefinido (aberto). O conhecimento de Deus a respeito do futuro contém o que está determinado bem como o que é apenas possibilidade – isto é, é indeterminado. O futuro determinado inclui duas realidades: o que Deus decidiu que faria, e os eventos físicos determinados, como, por exemplo, o choque de um asteróide com a lua (ver John Sanders. Summary of openness theology. In: http://www.opentheism.info/, acessado em 21 de maio de 2007; ver também Gregory Boyd. God of the possible. Grand Rapids: 2000. p.32).

O casuísmo bíblico mostra que Deus conhece o futuro. Veja os seguintes exemplos:

. Então disse a Abrão: Sabes, de certo, que peregrina será a tua descendência em terra alheia, e será reduzida à escravidão, e será afligida por quatrocentos anos. Mas também eu julgarei a nação, à qual ela tem de servir, e depois sairá com grande riqueza. (Gênesis 15.13,14)

. E ele clamou contra o altar por ordem do SENHOR, e disse: Altar, altar! Assim diz o SENHOR: Eis que um filho nascerá à casa de Davi, cujo nome será Josias, o qual sacrificará sobre ti os sacerdotes dos altos que sobre ti queimam incenso, e ossos de homens se queimarão sobre ti. (1Reis 13.2)

. Lembrai-vos das coisas passadas desde a antiguidade; que eu sou Deus, e não há outro Deus, não há outro semelhante a mim. Que anuncio o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: O meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade. (Isaías 46.9,10)

. As primeiras coisas desde a antiguidade as anunciei; da minha boca saíram, e eu as fiz ouvir; apressuradamente as fiz, e aconteceram. Porque eu sabia que eras duro, e a tua cerviz um nervo de ferro, e a tua testa de bronze. Por isso te anunciei desde então, e te fiz ouvir antes que acontecesse, para que não dissesses: “O meu ídolo fez estas coisas, e a minha imagem de escultura, e a minha imagem de fundição as mandou”. (Isaías 48.3-5)

. E puseram a sua sepultura com os ímpios, e com o rico na sua morte; ainda que nunca cometeu injustiça, nem houve engano na sua boca. (Isaías 53.9)

. Porque assim diz o SENHOR: Certamente que passados setenta anos em Babilônia, vos visitarei, e cumprirei sobre vós a minha boa palavra, tornando a trazer-vos a este lugar. (Jeremias 29.10)

Alguém poderia afirmar que Deus conhece do futuro apenas aquilo que determinou: Deus conhece o futuro como decreto. As profecias bíblicas seriam, portanto, anúncios antecipados daquilo que Deus decidiu fazer independentemente de quaisquer fatores, inclusive a livre vontade humana. Mas podemos fazer duas objeções a isto. A primeira, de ordem moral, a segunda, lógica.

Diz Ariovaldo Ramos que o futuro como decreto “parece fazer sentido em relação a profecias como as que se cumpriram na vida de Jesus Cristo. Mas e quanto àquelas de aviso, como a de que Pedro negaria a Cristo três vezes antes do cantar do galo ou o anúncio da traição de Judas Iscariotes? Se elas se enquadram nos decretos, Deus é culpado, pois, ao decretar que Pedro ou Judas faria o que deles foi dito, deixou-os sem escolha a não ser a de pecar segundo a palavra divina; logo, não poderiam ser passíveis de juízo, pois estavam amarrados a um desígnio inexorável. Há situações que foram pré-determinadas, até como juízo, mas foram devidamente anunciadas como tal – como no caso do endurecimento do coração de Faraó na ocasião do êxodo judeu. Cristo, porém, disse que os escândalos eram inevitáveis, mas não os escandalizadores (Mateus 18.7-9) (...) se todo aviso que se encontra na Bíblia é o deflagrar de um desígnio, então a história está mais para um grande teatro do que para o desenrolar de uma batalha pela salvação da humanidade”. Esta é a objeção de ordem moral. (Ariovaldo Ramos. Teologia e lógica. In: http://www.teologiabrasileira.com.br/Materia.asp?MateriaID=87 , acessado em 22 de maio de 2007)

A segunda objeção é de ordem lógica: “se Deus nada sabe [não conhece o futuro, digo eu], como pode decretar, uma vez que os fatos não caem de pára-quedas sobre a história, senão como corolário de um sem número de movimentos? Para decretar algo na história é preciso saber onde a história estará em determinado momento, uma vez que decretar é impor uma das variantes possíveis”, diz Ariovaldo Ramos. (Idem)

O futuro como decreto, ou o futuro como resultado da livre escolha humana – cenário onde os decretos se cumprirão, são conhecidos de antemão por Deus. Caso tudo seja decreto, o ser humano não é passível de julgamento moral. Caso tudo seja imprevisível, então a história está à deriva. Ambas as possibilidades não se encaixam no está revelado a respeito de Deus na Bíblia Sagrado.

O Teísmo Aberto tenta resolver esta questão argumentando que o futuro é parcialmente fechado (decretado) e parcialmente aberto (sujeito às ações livres). Isso é óbvio e acredito verdadeiro. Mas isso não dá margem para que se deduza necessariamente que Deus não conhece aquilo que no futuro está aberto. A afirmação de que Deus conhece apenas o que existe para ser conhecido, e o futuro aberto ainda não existe e, portanto, não pode ser conhecido nem mesmo por Deus, fica devendo explicações a respeito de algumas profecias. Como explicar textos como:

. E então verão vir o Filho do homem nas nuvens, com grande poder e glória. E ele enviará os seus anjos, e ajuntará os seus escolhidos, desde os quatro ventos, da extremidade da terra até a extremidade do céu (...) Mas daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos que estão no céu, nem o Filho, senão o Pai. (Marcos 13.27-32)

. E, comendo eles, disse: Em verdade vos digo que um de vós me há de trair. E eles, entristecendo-se muito, começaram cada um a dizer-lhe: Porventura sou eu, SENHOR? E ele, respondendo, disse: O que põe comigo a mão no prato, esse me há de trair. Em verdade o Filho do homem vai, como acerca dele está escrito, mas ai daquele homem por quem o Filho do homem é traído! Bom seria para esse homem se não houvera nascido. E, respondendo Judas, o que o traía, disse: Porventura sou eu, Rabi? Ele disse: Tu o disseste. (Mateus 26.21-27)

. Replicou-lhe Jesus (a Pedro): Em verdade te digo que hoje, nesta noite, antes que o galo cante duas vezes, três vezes tu me negarás. (Marcos 14.30)

. Naqueles dias desceram profetas de Jerusalém para Antioquia; e levantando-se um deles, de nome Ágabo, dava a entender pelo Espírito, que haveria uma grande fome por todo o mundo, a qual ocorreu no tempo de Cláudio. (Atos 11.28)

. E, demorando-nos ali por muitos dias, chegou da Judéia um profeta, por nome Ágabo. E, vindo ter conosco, tomou a cinta de Paulo, e ligando-se os seus próprios pés e mãos, disse: Isto diz o Espírito Santo: Assim ligarão os judeus em Jerusalém o homem de quem é esta cinta, e o entregarão nas mãos dos gentios. (Atos 21.10,11)

Voltamos ao dilema anterior, caso Pedro e Judas tenham agido obedecendo um decreto de Deus, então são inocentes. Caso tenham feito o que fizeram por livre escolha, então o futuro era previamente conhecido. Concordo plenamente quando o Teísmo Aberto diz que o futuro está parcialmente fechado (decretado) e parcialmente aberto (sujeito às escolhas humanas livres). Mas não vejo como necessária a crença em que Deus não conheça o futuro aberto, até porque o casuísmo bíblico e a lógica teológica evidenciam o contrário.

Mas como pode Deus conhecer o que ainda não aconteceu como se já tivesse acontecido? Na verdade, como pode Deus chamar à existência as coisas que não são como se já fossem?”. Eis mais uma questão com a qual consigo conviver apenas em termos de paradoxo.

Considerações (quase) finais

Os paradoxos de minha fé afirmam que:
. Deus escreve a história através das mãos humanas
. Deus age soberanamente levando em conta a liberdade humana
. Deus conhece os fatos que ainda não aconteceram

Qual a relevância destas afirmações para a vida e o relacionamento com Deus e a caminhada no discipulado de Cristo? Ou mais precisamente, como podemos e ou devemos nos posicionar diante destas verdades, de modo a assumirmos as responsabilidades inerentes ao sagrado direito de viver? As respostas serão abordadas em Os paradoxos da minha fé – Parte 2.

9.6.07

Como seria minha vida se eu não acreditasse em Deus

Outro dia me surpreendi me perguntando como seria minha vida se eu não acreditasse em Deus. Em termos positivos, quis saber a respeito da função de Deus em minha vida (já sei, você vai dizer que reduzi deus a uma coisa e estabeleci com ele uma relação mecânica e funcional, mas deixa pra lá, você vai ver que não é isso, só estou usando a melhor palavra que achei). O primeiro impulso foi na direção da questão ética: Deus é minha matriz de certo e errado, bem e mal. Há muita coisa que faço e deixo de fazer na vida por acreditar que Deus é um padrão a ser seguido ou obedecido, não necessariamente por causa de Deus em si, mas a bem de quem o obedece ou segue: algo como seguir as orientações de um manual de instruções – você pode fazer do seu jeito, mas a coisa não vai funcionar, e o resultado não é que o manual vai ficar triste ou bravo com você, mas que a coisa não vai funcionar mesmo.

Logo depois desta conclusão rápida, me pareceu óbvio que Deus não seria a única alternativa para que eu tivesse uma orientação ética: os ateus e agnósticos também têm sua ética. O passo seguinte foi imaginar que outra função Deus ocuparia em minha vida além da referência ética.

Provavelmente você afirmaria o óbvio: Deus é aquele que cuida de mim, me protege, provê para o meu bem e minha felicidade. Embora eu acredite nisso, na verdade, não me basta, pois a vida está cheia de acontecimentos que me induziriam a acreditar exatamente o contrário. Caso eu dissesse a um cético que Deus é como um pai, mas um pai todo-poderoso que cuida de mim, certamente eu seria bombardeado de perguntas. Como disse Robert De Niro: “Se Deus existe, ele tem muito o que explicar”. Além disso, estar sob o cuidado de um superprotetor não é a razão porque acredito em Deus: de fato, abro mão de ser protegido – minha solidariedade com a raça humana não me permite esperar melhor sorte do que a das crianças abandonadas, dos enfermos crônicos, dos miseráveis e vitimados pelas atrocidades dos maus. Ou Deus protege todo mundo, ou a proteção não serve como fundamento para a crença nele.

A idéia de um ser lá em cima fazendo e acontecendo aqui em baixo, como um mestre enxadrista que faz dos seres humanos peças num tabuleiro cósmico nunca me agradou. Mas mesmo assim, acredito nisso: sou daqueles que acredita que Deus está no controle do universo e da história. O que quero dizer é que não acredito em deus como se as coisas que acontecem ou deixam de acontecer fossem resultado de decisões divinas, do tipo: vou dar este emprego pra ele? vou curar esta criança? vou dar este câncer de mama para ela? vou fazer com que eles se casem?, e assim por diante, como se Deus fosse uma máquina de decisões que não para nunca e afeta tudo quanto existe em tudo quanto é lugar em relação a todo mundo.

A maneira como percebo Deus é mais ou menos como percebo o sol: ele simplesmente está lá. Acredito em Deus mais ou menos assim: Deus está, ou se preferir, Deus é. Assim como o sol irradia seu calor sem cessar, também Deus afeta tudo em todo lugar em relação a todo mundo. O sol não precisa tomar decisões: ele simplesmente está lá. Assim também em relação a Deus.

É verdade que nem todas as pessoas e nem todos os lugares são afetados pelo sol, e também que as pessoas e lugares que são afetados pelo sol experimentam o sol de maneira diferente e com conseqüências as mais variadas. Mas não por causa do sol. O sol está sempre lá e é sempre do mesmo jeito. O que muda é a realidade sobre a qual o sol incide: se a pessoa está à sombra é afetada de um jeito, se está descoberta é afetada de outro; o fruto do topo da árvore é afetado de um jeito, escondido entre as folhas, de outra; a água do lago é afetada de um jeito, empoçada, de outro; uma planta em boa terra e irrigada é afetada de um jeito, em solo ruim e seca, de outro. O sol está sempre lá e do mesmo jeito, aqui embaixo é que as coisas são diferentes.

Assim também em relação a Deus. Ele é, e sempre do mesmo jeito, as condições que lhe são dadas é que mudam: uma criança sozinha na rua e outra num ambiente familiar de afeto e amor; um homem que aproveitou bem suas oportunidades de estudo e formação profissional e outro que não teve a mesma sorte; alguém com uma doença congênita e outra pessoa com propensão atlética; a periferia do Haiti e o condomínio na Califórnia. Deus é, e sempre o mesmo, fluindo de maneira plena e equânime sobre tudo e todos, em todo tempo e lugar. As realidades sob sua influência é que são distintas. Por esta razão as conseqüências de sua influência são diversas e jamais podem ser padronizadas.

Já imagino o que você está pensando. Você acha que acabei de tirar a dimensão pessoal de Deus, e passei a tratar Deus como uma força ou uma energia. Faz sentido, mas tenho uma saída. A diferença entre Deus e uma força ou energia é que as forças e energias não afetam dimensões pessoais. Por exemplo, não é possível prescrever 30 minutos de banho de sol para adquirir capacidade de perdoar, 20 minutos de banho de chuva para se livrar do vício de mentir, ou 45 minutos de banho de luz para se encher de compaixão. Essas coisas: amor, perdão, misericórdia, justiça, solidariedade, pureza de coração, alegria e saudades são atributos pessoais, relativos a seres conscientes, auto-conscientes, com capacidades afetivas-emocionais, intelectuais e racionais, e volitivas. Por esta razão, o sol é apenas uma metáfora – incompleta, como toda metáfora – para Deus.

Deus não é uma energia ou uma força impessoal, mas o Ser–em–Si, fundamento pessoal de toda a realidade existente. Como disse São Paulo, apóstolo: em Deus somos, nos movemos e existimos.

Dallas Willard me ajudou muito a compreender isso quando afirmou que a principal maneira como somos afetados por Deus é através de “pensamentos e sentimentos que são nossos, mas não tiveram origem em nós”. Esta é minha experiência de Deus. Continuo acreditando que Deus está no controle de tudo, é livre para tomar decisões e afetar a realidade conforme sua vontade, cuida de mim e de todo mundo, faz e acontece na história e nas minhas circunstâncias, dispões de pessoas para a vida e para a morte, e o que mais você quiser ou considerar necessário atribuir como capacidade e direito a alguém que seja chamado Deus, afinal, por definição, Deus é incondicionado e ilimitado. Mas todas estas coisas atribuídas a Deus me são imponderáveis e inacessíveis. O que me afeta de fato é que crendo em Deus e conscientemente me submetendo a Ele, experimento pensamentos e sentimentos que são meus, mas não têm origem em mim. Sou levado a um estado de ser ao qual jamais conseguiria chegar sozinho. Deus é meu interlocutor amoroso. Deus é meu companheiro de viagem.

O que acontece fora de mim, se Deus faz ou deixa de fazer, se foi ele quem fez ou deixou de fazer, não me diz respeito, minha razão não alcança, e, portanto, não é objeto de minha preocupação para caminhar pela vida. Mas o que acontece dentro de mim, isso sim, é tudo quanto eu tenho e me basta. Tudo quanto tenho para orientar a minha peregrinação existencial são sentimentos e pensamentos que são meus, muitos deles que não tiveram origem em mim. Isso é questão de fé. E essa é a minha fé: estou sob Deus, suplicante e humildemente dependente de seu amor para me tornar tudo quanto estou destinado a ser, independente do que me possa acontecer.

A mim me basta saber que em pastos verdejantes às margens de águas puras e cristalinas, ou no vale da sombra da morte, nada preciso temer, pois Deus está comigo, refrigerando-me a alma, guindo-me pelos caminhos da justiça por amor do seu nome. A mim me basta saber que se Deus é por mim, ninguém pode ser contra mim, pois nada pode me separar do amor de Cristo: nem tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada, pois estou convencido de que nem morte nem vida, nem anjos nem demônios, nem o presente nem o futuro, nem quaisquer poderes, nem altura nem profundidade, nem qualquer outra coisa na criação será capaz de nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus, nosso Senhor.

Não sei como seria minha vida se eu não acreditasse em Deus. Muito menos se Deus não acreditasse em mim. E nem quero saber.

8.6.07

Missão Integral

Passei o dia no Fórum Jovem de Missão Integral [http://www.forumjovemdemissaointegral.org]. Dentre várias discussões relevantes, destaco a relação entre evangelização e responsabilidade social, ainda é presente.

A razão desta dicotomia é o conceito de evangelização como proclamação de uma mensagem, mais precisamente o plano de salvação, resumido em palavras de convocação para que as pessoas individualmente receberem Jesus como Salvador pessoal.

Evangelização, no contexto da missão integral, é mais do que compartilhar uma mensagem, é anunciar uma realidade: a chegada do reino de Deus (Mateus 4.12-17; Marcos 1.14,15). Apresentar o reino de Deus implica mais do que a proclamação de uma mensagem. Assim como o exército vencedor sai anunciando que a guerra acabou e estabelecendo uma nova realidade aonde chega a notícia, também a igreja deve anunciar ao mundo que o rei justo e verdadeiro venceu o diabo na cruz do Calvário ao mesmo tempo em que destrói as obras do diabo na sociedade (Mateus 4.23-25; Lucas 4.18-21; 7.20-23).

A igreja que se compromete a ser um sinal histórico do reino de Deus não faz distinção entre evangelização e ação social, pois não compreende uma sem a outra, ou melhor, compreende que a evangelização implica necessariamente a ação social.


Ed René Kivitz
Pastor da Igreja Batista de Água Branca (São Paulo), autor e conferencista.
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  • BOSCH, David. Missão transformadora: mudanças de paradigmas na teologia da missão. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2002.

  • XI Semana de Estudos de Religião - Fundamentalismos: discursos e práticas

    PRELETORES: Diversos
    DATA: 2 a 4 de outubro
    LOCAL: São Paulo (SP)
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  • "A missão é o sim de Deus ao mundo; a participação na existência de Deus no mundo. Em nossa época, o sim de Deus ao mundo revela-se, em grande medida, no engajamento missionário da igreja no tocante às realidades de injustiça, opressão, pobreza, discriminação e violência."
    David Bosch
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