14.2.07

Consultoria Eclesiástica

Resolvi entrar no mercado de consultoria eclesiástica. Após mais de 20 anos de contatos com modelos metodológicos que visam otimizar os resultados das igrejas acredito que já consegui alinhavar algumas idéias suficientemente testadas e aprovadas. Ofereço, portanto, e de graça, conselhos para líderes que desejam fazer sua igreja crescer.

Antes, recomendações bibliográficas. Leia Guy Debord para adquirir noções a respeito da sociedade espetáculo, onde até mesmo a fé é show. Leia também Pierre Bourdier para se familiarizar com a realidade dons bens simbólicos no mercado, inclusive religioso. Finalmente, leia Maquiavél, e medite sobre o postulado da primazia dos fins sobre os meios.

Eis os conselhos.

– Pratique o ilícito, afinal você não vai conseguir chegar muito longe sem umas boas maracutaias. Faça com que as pessoas trabalhem para você e depois mande que busquem seus direitos na justiça, encontre fiadores para seus negócios e não tenha escrúpulos em deixar que eles se virem para pagar a conta, em caso extremo, dê calote sem dó nem piedade, e, principalmente, use e abuse dos ambiciosos e vaidosos que darão até as calças para serem identificados como as pessoas de sua confiança – pegue as calças deles. Não se importe com títulos protestados, aliás, encontre número suficiente de laranjas e crie empresas fantasmas para fazer escoar todas as demandas judiciais contra você. Externalize, companheiro, o máximo possível.

– Invista na comunicação de massa: rádio, tv e shows, muitos shows, mega shows. O mundo gospel está cheio de artistas talentosíssimos, bem intencionados e precisando ganhar o pão de cada dia. Prometa o pão. Grave os caras, promova a banda deles, mas retenha todos os direitos em sua propriedade e faça amarrações contratuais de tal maneira que eles sejam obrigados a comer na sua mão.

– Não tenha vergonha de pedir dinheiro. Faça com que todos acreditem que doar para sua igreja é a mesma coisa que doar para Deus. Crie alguns projetos de fachada e divulgue os resultados como pretexto para pedir mais dinheiro. Desvie todos os recursos doados para (1) empresas comerciais e (2) patrimônio pessoal. Preserve seu patrimônio colocando tudo em nome de laranjas ou em contas no exterior. Institua uma fundação que possa funcionar como plataforma de lavagem de dinheiro e use também as igrejas (multiplicadas em sistema de franquia) como forma de burlar o fisco.

– Assuma uma postura de liderança espiritual como celebridade. Ande rodeado de asseclas, serviçais e guarda-costas. Faça muito barulho ao chegar e ao sair. Não permita que sua presença passe despercebida. Ostente todos os sinais exteriores possíveis de riqueza: roupas, jóias, cabelos, canetas, relógios, carros, e, se possível dê um jeito de aparecer na revista Caras. Faça com que o povo veja como você é próspero e repita à exaustão que tudo o que você possui é uma evidência da benção de Deus sobre a sua vida. Faça com que todos acreditem que poderão chegar onde você está. Ou melhor, faça com que tenham inveja de você e se disponham a fazer qualquer coisa para chegar aonde você chegou, ou, na pior das hipóteses, ficar perto de você.

– Satanize todos os seus críticos e opositores. Transforme todos eles em inimigos de Deus. Pouca coisa une mais um povo do que um inimigo comum: encontre um, a Globo, por exemplo. Construa um discurso persecutório, repita sem parar que você é vítima de perseguição religiosa, que estão sendo injustos contra você e que na verdade perseguir você é apenas uma artimanha do diabo para levantar oposição a Deus e ao evangelho. Crie símbolos de amarração simbólica e crie um espírito de corpo do tipo “nós contra o mundo e todo mundo é contra nós”. Lance campanhas de compromissos até a morte, crie slogans com palavras de ordem, uniformize seu exército – faça todos os líderes usarem a mesma camiseta e venda camisetas iguais para o povo.

– Cale a voz da sua consciência. Deus costuma falar através dela. Afaste-se de todas as pessoas sérias que aparecerem no seu caminho. Afaste-as de você. Invente calúnias contra elas. Deixe-as fragilizadas, com uma mão na frente e outra atrás, e assim não terão forças emocionais para enfrentar você e lutar pelo que é justo, pois estarão ocupadas tentando se reerguer. Não olhe nos olhos do povo simples que segue você, não se deixe mover por compaixão, abafe todos os impulsos de bondade e honestidade. Quando sentir vergonha de ser quem você é, fique quietinho, esperando a vergonha passar. Em último caso, tente se convencer de que as pessoas sinceras e realmente tocadas por Deus no meio dessa confusão toda que você criou ao seu redor serão cuidadas pelo próprio Deus. Chore de noite, escondido ou escondida. Com o tempo sua consciência se cauteriza e a coisa flui que é uma beleza.

– Creia que é possível nascer de novo. Ou, se for o caso, creia que é possível voltar ao primeiro amor.

Não tenho dúvidas que sua igreja vai crescer. A história demonstra que não apenas igrejas evangélicas, mas também movimentos políticos e econômicos, bem como seitas de toda sorte usam regras semelhantes e prosperam. Caso você volte ao primeiro amor, não se envergonhe do evangelho de Jesus Cristo. Levante as mãos para o céu e agradeça. Deus vai lhe dar forças para você conviver com sua memória e reescrever sua história.

12.2.07

João Hélio

O Brasil está de luto por João Hélio, o menino de 6 anos, arrastado pelos ladrões em fuga por sete quilômetros, preso ao cinto de segurança do carro de sua família roubado na cidade do Rio de Janeiro. Uma tragédia bárbara. Aliás, mais uma.

Além da legítima e imprescindível solidariedade à família enlutada, por quem todos os cristãos intercedem pelo consolo dos céus, nestas horas emergem discussões a respeito da maioridade penal, frouxidão da legislação criminal, aumento das penas aos criminosos – prisão perpétua, pena de morte, sistema carcerário correcional, e todo o aparato jurídico e policial que em tese deveriam proteger os cidadãos e reabilitar os criminosos.

As primeiras vozes, no calor do espanto e da revolta, trazem à tona a Lei de Talião: olho por olho, dente por dente; bateu, levou; matou, morreu. O espírito do coro é mais para vingança do que para justiça, contrário ao espírito de Talião, que limitava a resposta do agredido, que não poderia causar ao agressor dano maior do que o sofrido.

Diante do debate, pelo menos duas alternativas são possíveis aos cristãos. A primeira leva às últimas conseqüências o conceito de Estado laico, e advoga que a vida em sociedade não pode ser conduzida pelos valores do evangelho, mas pelo contrato social. Nesse caso, o Estado laico seria conduzido pela força da lei implacável, onde não há margem para perdão, compaixão. Na verdade, vale a máxima: aos amigos a misericórdia, aos inimigos a lei. A religião não se intromete na condução dos assuntos da sociedade e na administração da coisa pública e da norma regente da vida coletiva. Perdoar é tarefa da igreja, ao estado compete fazer justiça, e para fazer justiça aplica-se a lei, de preferência de Talião, onde cada um recebe de volta o dano que causou ao outro ou à coletividade. Para proteger a coletividade, elimina-se o criminoso. Abre parêntesis: numa visão sistêmica, difícil seria identificar o real criminoso, ou definir um criminoso apenas. Fecha parêntesis.

Outra alternativa seria compreender o estado laico como aquele onde todas as vozes têm vez e voto, e cujo equilíbrio depende da equidade de todas as forças representativas daqueles que o constituem. Em outras palavras, por exemplo, a OAB defenderia a aplicação da lei e a Igreja defenderia a outorga do perdão.

Religião e secularização

Li Orhan Pamuk, Nobel de Literatura em 2006. Ele me fez pensar nas abrangentes implicações da secularização, na força da religião, e especialmente no significado de um Estado laico. Considerando correto que religioso e secular são os dois extremos da civilização, Deus não tem vez nem voz no mundo secularizado, o que explica ou justifica (ou explica mas não justifica) o Estado laico.

Houve um tempo quando a religião dava as cartas do processo civilizatório, tanto no ocidente cristão quanto no oriente islâmico. O advento da secularização destronou a religião e assumiu o controle da vida em sociedade. Desde então a religião passou a ser encarada como questão de foro íntimo, não poucas vezes associada à ignorância, alienação, superstição, infantilidade e primitivismo.

O Estado laico implica a postura ateísta, isto é, Deus não pode ser invocado como argumento em questões de ciência e legislação. A partir desta premissa, a coisa pública–res-pública–república, busca sua sustentação em fundamentos não religiosos.

A princípio, parece lógico e justo. Caso o aspecto religioso fosse levado em consideração para a norma científica e a legislação da sociedade, assistiríamos o digladiar das diversas tradições religiosas pela primazia do arbítrio da vida coletiva, isto é, cada tradição religiosa tentaria anular as outras e impor sua perspectiva como única verdade – o que, aliás, se tem visto hoje em dia. O conflito entre as potências ocidentais e orientais no mundo moderno (ou pós-moderno) é menos econômico e geopolítico do que religioso e de civilizações. Nesse sentido, os que defendem o estado laico, onde a religião ocupa espaço pessoal e privativo e não pode ser invocada para a coisa pública parecem ter mesmo razão.

Mas há o outro lado da moeda. Alijar a religião do processo social implica calar a voz de significativo número de cidadãos, e, nesse caso, o laicismo do Estado passa a conspirar contra um dos alicerces da opção republicana, a saber, a liberdade das consciências individuais. Também ocorre que o Estado perde riquezas próprias das diferentes dimensões da sabedoria e da verdade, notadamente as dimensões inerentes aos saberes não racionais (diferente de “irracionais”). O equilíbrio do Estado não está na inexistência de conflitos, mas na igualdade de direitos das forças que o constituem. Isso explica porque as repúblicas seculares são tão radicais quanto os estados baseados no fundamentalismo religioso: todo aquele que insiste em calar vozes perde o direito de falar, e quem perde o direito a alguma coisa e ainda continua a exercê-lo, o faz pela força, de modo que sua autoridade se torna ilegítima e deve ser resistida.

Tanto a secularização quanto o fundamentalismo religioso conspiram contra a liberdade. Este é um tempo, portanto, de uma melhor definição de Estado laico. Não mais aquele onde a religião está ausente, mas aquele onde todas as religiões têm iguais e garantidos direitos, e aceitam participar do jogo democrático, respeitadas as regras do jogo, e mediante o acordo tácito de uma vez no poder, preservar os direitos dos discordantes. Isso sim é utopia. Isso sim é ser republicano. Ou democrata. Como queira. Isso sim é ser religioso (no sentido subjetivo). Ou secular (no sentido objetivo). Como queira.


Ed René Kivitz
Pastor da Igreja Batista de Água Branca (São Paulo), autor e conferencista.
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  • BOSCH, David. Missão transformadora: mudanças de paradigmas na teologia da missão. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2002.

  • XI Semana de Estudos de Religião - Fundamentalismos: discursos e práticas

    PRELETORES: Diversos
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  • "A missão é o sim de Deus ao mundo; a participação na existência de Deus no mundo. Em nossa época, o sim de Deus ao mundo revela-se, em grande medida, no engajamento missionário da igreja no tocante às realidades de injustiça, opressão, pobreza, discriminação e violência."
    David Bosch
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