27.9.06

Religião e Outra Espiritualidade

Qual a diferença entre espiritualidade e religião?

Espiritualidade é a experiência humana do sagrado, transcendente, divino. Religião é a maneira como o ser humano organiza e vivencia esta experiência. Espiritualidade é uma experiência humana universal. Religião é uma experiência humana condicionada a dogmas, ritos, códigos morais e grupos de pessoas que acreditam nas mesmas coisas e celebram sua espiritualidade da mesma maneira. As religiões mais conhecidas no mundo são Judaísmo, Islamismo, Cristianismo, Hinduísmo e Budismo. A espiritualidade é o que os seres humanos têm em comum. Por exemplo, tanto o Dalai Lama quanto o Papa Bento XVI têm uma espiritualidade, mas têm religiões diferentes. Um é budista e outro é cristão. Em termos simples, assim como o ser humano tem corporeidade (relação com o corpo) e racionalidade (relação com a mente), também tem espiritualidade (relação com as realidades espirituais). Religião é maneira como cada ser humano desenvolve e pratica sua espiritualidade.

Por que “outra espiritualidade”?

Dentro de cada religião existe um número variado de maneiras de vivenciar a espiritualidade. Por exemplo, no Cristianismo a espiritualidade pode ser vivida de uma forma Católica Romana e outra Protestante, e mesmo dentro do Protestantismo, existem ramificações como o protestantismo histórico, o pentecostalismo e o neo-pentecostalismo. No Brasil, os protestantes ficaram conhecidos como “evangélicos”. Isto é, “evangélico” é um ramo do protestantismo, que por sua vez é um ramo do Cristianismo, que por sua vez é uma das cinco grandes religiões. Ser “evangélico”, portanto, é uma forma de viver a espiritualidade cristã, e nesse caso podemos dizer que existe uma “espiritualidade cristã evangélica”. Por trás da expressão “outra espiritualidade” está a sugestão de que existe uma outra maneira de viver a espiritualidade cristã, diferente da maneira como os evangélicos a vivem. Na verdade, o livro procura demonstrar sob vários enfoques, que a “espiritualidade evangélica” está cada vez mais distante do que se pode considerar uma “espiritualidade cristã”.

Outro Deus [# 02]

Chegou a minha vez de dizer que “Deus morreu, vocês mataram Deus”. Sei dos riscos. Dizem que gato escaldado tem medo de água fria. Mas alguns gatos não se dão por vencidos. Aliás, dizem também que gatos têm sete vidas. Que seja.

Tudo bem, posso atenuar um pouco, respeitando as pessoas que me querem bem e temem por mim. Temem que eu me comprometa em lutas quixotescas. Temem as retaliações que possa sofrer. E, na verdade, temem que eu perca o juízo e a fé. Nesse caso, dou um passo atrás e digo que um deus morreu em mim. E nasceu outro, que me seduziu com amor eterno. Por Ele me apaixonei.

O deus que morreu foi exaltado na sub-cultura da religiosidade evangélica brasileira. Basicamente, era um deus que (1) vivia de plantão para me poupar de qualquer tragédia, evitar meus sofrimentos, e abreviar as situações que me trariam qualquer desconforto; (2) prometia satisfazer não apenas minhas necessidades, mas também meus desejos; (3) estava comprometido a me favorecer em todas as minhas demandas contra os pagãos; (4) compensava minhas irresponsabilidades e ignorâncias em troca de minha fé; (5) manipulava todas as circunstâncias da minha vida como um tapeceiro que corta fios e dá nós no emaranhado do avesso do tapete, para revelar a bela paisagem ao final do processo, capaz de encantar todos aqueles que olham pelo lado certo. Enfim, morreu em mim aquele deus parecido com a figura idealizada de um super-pai, que levou homens como Freud, Nietzsche e Sartre a desdenharem da religião.

Esse deus morreu em mim porque se demonstrou falso. Isto é, ou não existia de fato, ou estava descrito de maneira equivocada, pois não precisamos ser muito sagazes para perceber que (1) o justo sofre, (2) o justo convive com frustrações, (3) os maus prosperam, (4) Deus não faz o que compete aos seres humanos fazer, e (5) não se pode conceber que Deus tenha decidido na eternidade que a missionária fulana de tal seria estuprada numa esquina de São Paulo, para cumprir um propósito, pois nesse caso, o estuprador está isento de responsabilidade.

Não é razoável a crença em um deus que coloca os seus fiéis numa bolha protetora contra toda sorte de dificuldades e possibilidades de dores. A Bíblia Sagrada registra que todos os homens que foram íntimos de Deus e cumpriram tarefas designadas por Ele sofreram, mais até do que muitos que deram as costas para Ele. Isso levou Santa Teresa de Ávila afirmar: “Se o Senhor trata assim os seus amigos, não se admira que tenha tantos inimigos”. Também não faz sentido o relacionamento com Deus motivado pelo interesse de suas bênçãos e galardões, pois isso faz com que Deus deixe de ser um fim em si mesmo e passe a ser um meio de prosperidade, isto é, passa a ser um ídolo a serviço dos fiéis. Igualmente incoerente é acreditar que a fé é suficiente para o êxito, pois ninguém passa no vestibular “pela fé”. Finalmente, não é sensato acreditar que Deus é a causa de tudo quanto acontece no mundo, pois nesse caso Deus estaria por trás de todo ato de maldade, levando o malvado a agir, de modo que ninguém seria culpado pelos seus atos.

Essa coisa de “Deus tem um plano para cada criatura” é incoerente em relação à fé cristã, pois seres criados à imagem e semelhança de Deus não podem ser privados da liberdade. Ou os seres humanos são responsáveis pelos seus destinos, ou não podem ser julgados moralmente.

Esse deus morreu. Mas sua morte fez ecoar uma pergunta no ar: Deus tem um favor especial aos nascidos de novo? Isto é, em relação aos não cristãos, os cristãos são tratados de maneira diferente pelo seu Deus? Minha resposta é sim e não.

Sim, porque por definição aqueles que se relacionam de maneira consciente e voluntária com Deus desfrutam de possibilidades que extrapolam os horizontes de vida daqueles que vivem como se Deus não existisse. A pergunta a respeito do cuidado especial de Deus não se refere a favoritismo ou acepção de pessoas, mas de algo inerente ao relacionamento. Algo como alguém perguntar se uma mãe trata diferente seus filhos em relação a outras crianças. É claro que sim, pois estão sob seus cuidados e sob sua autoridade. Mas, em tese, uma mulher que vive a experiência da maternidade trata todas as crianças com o mesmo senso de justiça e compaixão. E é justamente nesse sentido que Deus não faz qualquer distinção entre os que o reconhecem e os que o rejeitam: Deus faz o sol nascer sobre justos e injustos.

Mas então, qual foi o Deus que nasceu para ocupar o lugar do deus que morreu? Ou se preferir, para tornar a coisa um pouco mais prática, o que posso esperar de Deus?

(1) Sendo cristão, enxergo a vida com outros olhos. Experimentei a metanóia, que chamam de arrependimento, mas creio ser uma expansão de consciência (do gr. meta = além, e nous = mente). Vivo sob valores, imperativos, prioridades e propósitos diferenciados. Conhecer a Deus me faz andar na luz, na verdade, livre de pesos, culpas e máscaras, com a consciência e as intenções tão puras quanto um ser humano imperfeito as pode ter, e isso já basta para que minha vida dê um salto de qualidade imensurável.

(2) Recebo subsídios de Deus no meu “homem interior”, pois sendo verdade que “tudo posso naquele que me fortalece” aprendo a viver o contentamento em toda e qualquer situação. As promessas de Deus aos seus não dizem respeito ao conforto circunstancial ou à prosperidade aqui e agora, mas afetam a interioridade humana, por exemplo, com paz que excede o entendimento e alegria completa. Mais do que isso, a intimidade com Deus não faz a minha vida mais fácil, mas me faz mais humano, mais maduro, mais capaz de amar com a lucidez que escolhe as coisas mais excelentes, mais capaz de enfrentar com dignidade toda e qualquer situação.

(3) Sou integrado numa comunidade de cristãos que me abençoa na dinâmica da mutualidade. O socorro de Deus para minha vida chega pelas mãos dos meus irmãos. São os meus irmãos que me falam as palavras de Deus, repartem comigo seu pão, andam ao meu lado no vale da sombra da morte. Experimento a presença de Deus na comunhão com os filhos de Deus, vendo Deus na face dos irmãos.

(4) Tenho minha consciência e sensibilidades despertadas para o sofrimento da raça humana e a agonia do cosmos que sofre suas dores, de modo a receber um pouco do amor e da compaixão do coração de Deus em meu próprio coração, e acato a utopia do novo céu e da nova terra não como sonhos irrealizável, mas como promessa que motivas à ação toda vez que sou interpelado pelo Deus que me fala desde o clamor dos oprimidos.

(5) Vivo sob o olhar amoroso, poderoso e justo de Deus, que interfere em minha vida à luz de sua economia eterna, à seu critério, e isso é mistério da graça, isto é, não depende dos méritos dos beneficiados. Descanso no fato de que, apesar de Deus não ser a causa primeira de tudo quanto me acontece, não há qualquer coisa que venha me acontecer que esteja fora do seu conhecimento, controle e cuidado. É suficiente crer que toda vez que Deus opta por deixar a vida correr seu curso normal – e geralmente é isso o que Deus faz – nada pode me separar do seu amor, que está em Cristo Jesus meu Salvador.

Em síntese, morreu o deus que fazia de mim uma criança mimada, que chorava a cada desencontro da vida. Recebi revelação do Deus que me convida a crescer, para que Ele possa me receber como seu cooperador, seu amigo, alguém com quem Ele não tem segredos, e que encontra a felicidade não na vida confortável, mas na vida digna. Com a morte de um deus, morreu também uma espiritualidade. E nasceu outra, marcada pela graça, pela fé e pela resistência.

Outro Deus [# 01]

Por que “outro Deus”? Para responder, preciso fazer uma confissão: gosto de Marx (1818 – 1883), Nietzsche (1844-1900), Freud (1856-1939), Sartre (1905 – 1980), e outros caras do tipo.
Gosto porque são passionais, ou melhor, prefiro dizer viscerais, e honestos, pelo menos no que escreveram. Gosto porque suas perguntas deixam os religiosos, como eu, por exemplo, no canto da parede.
Gosto porque suas perguntas não têm nada a ver com Deus. Têm tudo a ver com os religiosos, ou se você preferir, com a idéia religiosa de Deus, o que Saramago chamou de “fator Deus” – a maneira como Deus é percebido, crido, tratado pelos que nele crêem.
A religião, no sentido de “fator Deus”, de fato, é um esconderijo para gente alienada, covarde e infantil. Não são poucos os que se apegam ao “fator Deus” em busca de consolo para sua infelicidade na existência e sobrevivem do sonho do paraíso pós morte, deixando a história entregue aos oportunistas.
Muita gente procura em Deus o pai que nunca teve e ou gostaria de ter tido, isto é, aquele protetor e provedor incondicional, para quem se corre quando a vida faz careta. Outros há que se recolhem em Deus fugindo exatamente da possibilidade de encarar as caretas da vida, numa recusa em assumir a responsabilidade de escrever uma biografia digna, entregando tudo aos desígnios determinados pelo céu, a famosa vontade de Deus.
Por que “outro Deus”? Porque um Deus que gera alienados, infantis e covardes não é Deus, é um deus. Um Deus “costas largas”, como diz minha mãe, responsabilizado por todas as mazelas da vida, e é cobrado por solucionar rápido o desconforto dos seus fiéis, não é Deus, mas um deus, isto é, um ídolo.
Mas há coisa pior do que ser alienado, infantil e covarde. Dizem que pouca gente faz tanto mal quanto os estúpidos engajados, os idiotas trabalhadores. Quando o sujeito é um estúpido ou idiota preguiçoso, passivo, causa pouco estrago. Mas quando o sujeito é dedicado, comprometido, voluntarioso, então o estrago é grande.
Eles descambam para os fundamentalismos, promovem os sectarismos, abusam de sua pseudo autoridade, manipulam gente piedosa, usam a religião em benefício próprio, instrumentalizam o nome de Deus, e transformam o que seria esperança em niilismo e cinismo. Estes tais serviram para Nietzsche justificar sua angústia: “Se mais remidos se parecessem os remidos, mais fácil me seria crer no redentor”.

26.9.06

A miopia de Lutero

Martinho Lutero, quem diria, disse que Jesus “comportou-se com tanta humildade e associou-se com homens e mulheres pecadores, e por conseqüência não foi grandemente estimado”, sendo que por conta disso, “o diabo fez vista grossa e não o reconheceu. Pois o diabo é míope; ele olha apenas para o que é grande e elevado e se apega a isso; não olha para o que está embaixo e abaixo dele”.

Gostaria que Lutero me explicasse um pouco mais essa coisa de que o diabo não prestou a devida atenção em Jesus. O Novo Testamento mostra um diabo perfeitamente consciente da identidade de Jesus, como também acuado de medo e submisso à autoridade do Filho do deus Altíssimo (leia Marcos 5.6,7, só pra ter uma idéia).

Mas meu foco principal não é esse. De fato, adoraria também saber de onde foi que Lutero tirou a idéia de que o homem está embaixo e abaixo do diabo. Admiro o Lutero, justo ele que, em minha humilde opinião, fez a opção correta ao traduzir o verso 5 do Salmo 8, onde se diz claramente que o homem foi criado “pouco abaixo de Deus”. Os tradutores se dividem, com ampla maioria concordando com Lutero, entre dizer que o homem está abaixo dos anjos ou abaixo de Deus. Alguns ficam encima do muro e traduzem “abaixo dos seres celestiais”. Mas a maioria esmagadora opta por colocar o homem em posição de autoridade sobre todo o universo criado, inclusive anjos e demônios. Lutero fez isso em sua tradução da Bíblia alemã em 1545.

Fico a me perguntar esta miopia na hierarquia dos seres criados, colocando o homem abaixo e embaixo do diabo, não explica o pessimismo antropológico da teologia tradicional. Toda vez que a dignidade do homem é usurpada o futuro da história fica mais sombrio. E os que vivem da religião mais radiantes.

O Evangelho dos Evangélicos

“Nem todo aquele que me diz Senhor, Senhor, entrará no Reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus.” [Jesus Cristo]

Estou convencido de que um é o evangelho dos evangélicos, outro é o evangelho do reino de Deus. Registro que uso o termo “evangélico” para me referir à face hegemônica da chamada igreja evangélica, como se apresenta na mídia radiofônica e televisiva.

O evangelho dos evangélicos é estratificado. Tem a base e tem a cúpula. Precisamos falar com muito cuidado da base, o povo simples, fiel e crédulo. Mas precisamos igualmente discernir e denunciar a cúpula. A base é movida pela ingenuidade e singeleza da fé; a cúpula, muita vez é oportunista, mal intencionada, e age de má fé. A base transita livremente entre o catolicismo, o protestantismo e as religiões afro. A base vai à missa no domingo, faz cirurgia em centro espírita, leva a filha em benzedeira, e pede oração para a tia que é evangélica. Assim é o povo crédulo e religioso. Uma das palavras chave desta estratificação é “clericalismo”: os do palco manipulando os da platéia, os auto-instituídos guias espirituais tirando vantagem do povo simples, interesseiro, ignorante e crédulo.

A cúpula é pragmática, e aproveita esse imaginário religioso como fator de crescimento da pessoa jurídica, e enriquecimento da pessoa física. Outra palavra chave é “sincretismo”. A medir por sua cúpula, a igreja evangélica virou uma mistura de macumba, protestantismo e catolicismo. Tem igreja que se diz evangélica promovendo “marcha do sal”: você atravessa um tapete de sal grosso, sob a bênção dos pastores, e se livra de mal olhado, dívida, e tudo que é tipo de doença. Já vi igreja que se diz evangélica distribuir cajado com água do Jordão (i.é, um canudo de bic com água de pia), para quem desejasse ungir o seu negócio, isto é, o seu business. Lembro de assistir a um programa de TV onde o apresentador prometia que Deus liberaria a unção da casa própria para quem se tornasse um mantenedor financeiro de sua igreja.

O povo religioso é supersticioso e cheio de crendices. Assim como o Brasil. Somos filhos de portugueses, índios, africanos, e muitos imigrantes de todo canto do planeta. Falar em espíritos na cultura brasileira é normal. Crescemos cheios de crendices: não se pode passar por baixo de escada; gato preto dá azar; caiu a colher, vem visita mulher, caiu garfo, vem visita homem; e outras tantas idéias sem fundamento. Somos assim, o povo religioso é assim. Tem professor de universidade federal dando aula com cristal na mão para se energizar enquanto fala de filosofia.

E a cúpula evangélica aproveita a onda e pratica um estelionato religioso: oferece uma proposta ritualística que aprisiona, promove a culpa e, principalmente, ilude, porque promete o que não entrega. Aliás, os jornais começam a noticiar que os fiéis estão reivindicando indenizações e processando igrejas por propaganda enganosa.

O evangelho dos evangélicos é estratificado. A base é movida pela ingenuidade e singeleza da fé, e a cúpula é oportunista. A base transita entre o catolicismo, o protestantismo e as religiões-afro, e a cúpula é pragmática. A base é cheia de crendices e a cúpula pratica o estelionato religioso.

O evangelho dos evangélicos é mercantilista, de lógica neoliberal. Nasce a partir dos pressupostos capitalistas, como, por exemplo, a supremacia do lucro, a tirania das relações custo-benefício, a ênfase no enriquecimento pessoal, a meritocracia – quem não tem competência não se estabelece. Palavra chave: prosperidade. Desenvolve-se no terreno do egocentrismo, disfarçado no respeito às liberdades individuais. Palavra chave: egoísmo. Promove a desconsideração de toda e qualquer autoridade reguladora dos investimentos privados, onde tudo o que interessa é o lucro e a prosperidade do empreendedor ou investidor. Palavra chave: individualismo. Expande-se a partir da mentalidade de mercado. Tanto dos líderes quanto dos fiéis. Os líderes entram com as técnicas de vendas, as franquias, as pirâmides, o planejamento de faturamento, comissões, marketing, tudo em favor da construção de impérios religiosos. Enquanto os fiéis entram com a busca de produtos e serviços religiosos, estando dispostos inclusive a pagar financeiramente pela sua satisfação. Em síntese, a religião na versão evangélica hegemônica é um negócio.

O sujeito abre sua micro-empresa religiosa, navega no sincretismo popular, promete mundos e fundos, cria mecanismos de vinculação e amarração simbólicas, utiliza leis da sociologia e da psicologia, e encontra um povo desesperado, que está disposto a pagar caro pelo alívio do seu sofrimento ou pela recompensa da sua ganância.

Em terceiro lugar, o evangelho dos evangélicos é mágico. Promove a infantilização em detrimento da maturidade, a dependência em detrimento da emancipação, e a acomodação em detrimento do trabalho.

Pra ser evangélico você não precisa amadurecer, não precisa assumir responsabilidades, não precisa agir. Não precisa agregar virtudes ao seu caráter ou ao processo de sua vida. Primeiro porque Deus resolve. Segundo porque se Deus não resolver, o bispo ou o apóstolo resolvem. Observe a expressão: “Estou liberando a unção”. Pensando como isso pode funcionar, imaginei que seria algo como o apóstolo ou bispo dizendo ao Espírito Santo: “Não faça nada por enquanto, eles não contribuíram ainda, e eu não vou liberar a unção”.

Existe, por exemplo, a unção da superação da crise doméstica. Como isso pode acontecer? A pessoa passa trinta anos arrebentando com o seu casamento, e basta se colocar sob as mãos ungidas do apóstolo, que libera a unção, e o casamento se resolve. Quem não quer isso? Mágica pura.

O sujeito é mau-caráter, incompetente para gerenciar o seu negócio, e não gosta de trabalhar. Mas basta ir ao culto, dar uma boa oferta financeira, e levar para casa um vidrinho de óleo de cozinha para ungir a empresa e resolver todos os problemas financeiros.

Essa postura de não assumir responsabilidades, de não agir com caráter, e esperar que Deus resolva, ou que o apóstolo ou bispo liberem a unção tem mais a ver com pensamento mágico do que com fé.

Em quarto lugar, o evangelho dos evangélicos tem espírito fundamentalista. Peço licença para citar Frei Beto: “O fundamentalismo interpreta e aplica literalmente os textos religiosos, não sabe que a linguagem simbólica da Bíblia, rica em metáforas, recorre a lendas e mitos para traduzir o ensinamento religioso.” O espírito fundamentalista é literalista, e o mais grave é que o espírito fundamentalista se julga o portador da verdade, não admite críticas, considerações ou contribuições de outras correntes religiosas ou científicas.

Quem tem o espírito fundamentalista não dialoga, pois considera infiéis, heréticos, ou, na melhor das hipóteses, equivocados sinceros, todos os que não concordam com seus postulados, que não são do mesmo time, e não têm a mesma etiqueta. Quem tem o espírito fundamentalista se considera paradigma universal. Dialoga por gentileza, não por interesse em aprender. Ouve para munir-se de mais argumentos contra o interlocutor. Finge-se de tolerante para reforçar sua convicção de que o outro merece ser queimado nas fogueiras da inquisição. Está convencido de que só sua verdade há de prevalecer.

Mais uma vez Frei Beto: “o fundamentalista desconhece que o amor consiste em não fazer da diferença, divergência”. Por causa do espírito fundamentalista, o evangelho dos evangélicos é sectário, intolerante, altamente desconectado da realidade. O evangelho dos que têm o espírito do fundamentalismo é dogmático, hermético, fechado a influências, e, portanto, é burro e incoerente.

Em quinto lugar, o evangelho dos evangélicos é um simulacro. Simulacro é a fotografia mais bonita que o sanduíche. Não me iludo, o evangelho dos evangélicos é mais bonito na televisão do que na vida. As promessas dos líderes espirituais são mais garantidas pela sua prepotência do que pela sua fé. Temos muitos profetas na igreja evangélica, mas acredito que tenhamos muito mais falsos-profetas. Os testemunhos dos abençoados são mais espetaculares do que a realidade dos cristãos comuns. De vez em quando (isso faz parte da dimensão masoquista da minha personalidade) fico assistindo estes programas, e penso que é jogada de marketing, testemunho falso. Mas o fato é que podem ser testemunhos por amostragem. Isto é, entre os muitos que faliram, há sempre dois ou três que deram certo. O testemunho é vendido como regra, mas na verdade é apenas exceção.

A aparência de integridade dos líderes espirituais é mais convincente na TV e no rádio do que na realidade de suas negociatas. A igreja evangélica esta envolvida nos boatos com tráficos de armas, lavagem de dinheiro, acordos políticos, vendas de igrejas e rebanhos, imoralidade sexual, falsificação de testemunho, inadimplência, calotes, corrupção, venda de votos.

A integridade do palco é mais atraente do que a integridade na vida. A fé expressa no palco, e nas celebrações coletivas é mais triunfante, do que a fé vivida no dia a dia. Os ideais éticos, e os princípios de vida são mais vivos nos nossos guias de estudos bíblicos e sermões do que nas experiências cotidianas dos nossos fiéis. Os gabinetes pastorais que o digam: no ambiente reservado do aconselhamento espiritual a verdade mostra sua cara.


Estratificado, mágico, mercantilista, fundamentalista, e simulacro. Eis o evangelho dos “evangélicos”.

O Deus Idolatrado

O segundo dos dez mandamentos proíbe a fabricação de ídolos e imagens de qualquer coisa no céu, na terra e embaixo da terra. A proibição inclui o próprio Deus. A inteligência do mandamento diz que qualquer tentativa de reduzir Deus a uma imagem implica transformá-lo em um ídolo. Deste pecado, entretanto, muitos cristãos são réus de juízo. Senão observe:

#1 Deus é transformado em ídolo quando ocupa o imaginário das pessoas como o mais poderosos dentre todos os deuses. O monoteísmo afirma que existe apenas um Deus, e não que Deus é o deus mais poderoso. O primeiro mandamento, “não terás outros deuses”, não é uma proibição à adoração de outros deuses, mas uma afirmação de que não existem outros deuses. Na verdade, os outros deuses são fabricação da mente humana, isto é, ídolos. Toda vez que Deus é comparado com “outros deuses”, mesmo para que seja destacado como o maior e melhor, ele foi reduzido à categoria de ídolo. Deus é único.

#2 Deus é transformado em ídolo quando é confinado aos limites de imagens, locais, pessoas, ritos, símbolos, seres, ou qualquer outra coisa que dê a Ele uma medida, pois Deus é o Ser-Em-Si, não sujeito a tempo, espaço e modo. Deus é Espírito.

#3 Deus é transformado em ídolo quando se pretende que o relacionamento com ele seja destituído de quaisquer implicações morais, pois isso equivale a atribuir a Deus uma categoria de neutralidade, e, portanto, despersonaliza-lo. Deus é Espírito Pessoal.

#4 Deus é transformado em ídolo quando o relacionamento com Ele é fundamentado em relações de mérito e demérito, pois nesse caso o fator determinante do relacionamento é o humano, que faz por merecer ou deixa de merecer, isto é, Deus apenas reage. Deus é gratuidade.

#5 Deus é transformado em ídolo quando o relacionamento com Ele é fundamentado em relações de causa e efeito, pois isso implica confinar Deus às regras de um mecanismo que pode ser ativado ou desativado, e nesse caso se pretende manipular Deus através a descoberta dos botões que o fazem funcionar. Deus é incondicionado.

#6 Deus é transformado em ídolo quando as expectativas que se têm a respeito dele geram ao redor de questões meramente circunstâncias, pois o reino de Deus não é comida nem bebida, isto é, não está circunscrito às questões efêmeras e materiais. Deus é Eterno.

#7 Deus é transformado em ídolo quando é submetido à obrigatoriedades determinadas pela conveniência humana, pois Deus deixa de ser um fim em si mesmo e é transformado em meio para um fim maior. Deus é soberano.

#8 Deus é transformado em ídolo quando em seu nome se faz exigência de sacrifícios humanos, pois Deus não se alimenta de vidas humanas, sendo Ele mesmo o doador e mantenedor da vida. Deus é amor.

#9 Deus é transformado em ídolo quando é submetido a qualquer regra de qualquer ordem. Deus é incontrolável.

#10 Deus é transformado em ídolo quando se torna objeto de discussão, em detrimento de objeto de devoção e paixão, o que pode acontecer inclusive em relação a este texto que fica dizendo que Deus é isso e aquilo. Deus é indiscutível.

22.9.06

Outra Espiritualidade

A expressão “outra espiritualidade” sugere a pergunta: “outra em relação a que?”. Isto é, que espiritualidade está sendo abandonada para que em seu lugar apareça “outra”? No meu caso é simples: estou abandonando a espiritualidade do senso comum evangélico, e saindo em busca da espiritualidade do senso comum da tradição cristã.

Apresso-me em explicar. Considero “senso comum” uma forma simples de me referir ao fato de que apesar da enorme diversidade a respeito das características que identificam o ser evangélico, há um núcleo que resume a maneira como este segmento religioso da sociedade articula sua crença e modus vivendi. Ao escolher o senso comum, admito que a “outra espiritualidade” que busco não é uma novidade, mas um resgate dos aspectos essenciais à fé cristã conforme se estabeleceram nestes mais de dois mil anos de história.

Deixando de lado o rigor acadêmico e científico, que não cabe na proposta deste texto, chamo de “senso comum da fé evangélica” os conteúdos articulados na face mais visível desta tradição religiosa, notadamente através das mídias impressa, radiofônica e televisiva. São os autores e comunicadores de massa que “fazem a cabeça” dos fiéis e aos poucos vão definindo, consciente e inconscientemente, voluntária e involuntariamente, um núcleo de crenças determinantes de uma cosmovisão, e por conseqüência, um jeito de ser no mundo. A partir de um determinado ponto, passa a existir uma cultura autônoma, independente dos conteúdos mais elaborados dos teóricos. Esta cultura autônoma é apropriada pelo povo e a partir de então é deflagrado um processo de desenvolvimento de crenças e costumes que vai se distanciando cada vez da proposta original.

Não tenho dúvidas quanto ao fato de que este fenômeno aconteceu na chamada igreja evangélica, e que o ser evangélico, conforme compreendido hoje pela sociedade brasileira, e até mesmo por muitos evangélicos, está absolutamente distante dos conteúdos originais da fé cristã. Evidentemente, é pretensioso aquele que afirma conhecer “os conteúdos originais da fé cristã”, pois toda teologia é interpretação, isto é, tudo quanto os cristãos propagam são versões do conteúdo original. O que se exige é a avaliação mínima dos conteúdos atuais em comparação com aqueles que foram historicamente, desde períodos mais remotos, divulgados como constitutivos da fé cristã. Tenho a firme convicção de que o cristianismo dos evangélicos contemporâneos é absolutamente distinto do cristianismo dos primeiros cristãos e das tradições teológicas mais consistentes da história da igreja.

Aliás, é muito triste o fato de que grande parte dos novos líderes evangélicos e dos novos convertidos à fé evangélica desconheçam a tradição teológica da história da igreja, seus expoentes mais respeitados, suas fundamentações filosóficas, seus embates com os espíritos de suas épocas, suas argumentações apologéticas, e, principalmente seu sangue vertido em defesa da fé. Os neo-evangélicos estão ocupados demais em construir uma experiência religiosa que lhes satisfaça no imediato, e não se ocupam com as aproximações da verdade, uma vez que vivem o pragmatismo de quem se ocupa antes em fazer deus funcionar do que em ser íntimo dEle.

Fui tomando consciência disso aos poucos, e de certa forma, construindo meu pensamento a respeito de “outro Deus e outra espiritualidade” passo a passo, um insight de cada vez, como o pão, que nos chega à alma toda manhã, caindo do céu a cada dia. Pão que reparto com temor e tremor.

Lançamento do novo livro

Convido você para o lançamento do meu novo livro, Outra espiritualidade, publicado pela editora Mundo Cristão.
DATA : 27 de setembro
LOCAL: Siciliano (Shopping Pátio Higienópolis - Av. Higienópolis, 618)
HORÁRIO: 19h30
Abraço e até lá!


Ed René Kivitz
Pastor da Igreja Batista de Água Branca (São Paulo), autor e conferencista.
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LANÇAMENTO

Os artigos reunidos neste livro não são expressões de rebeldia à ortodoxia cristã, mas de inquietude diante de uma Igreja que...
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  • BOSCH, David. Missão transformadora: mudanças de paradigmas na teologia da missão. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2002.

  • XI Semana de Estudos de Religião - Fundamentalismos: discursos e práticas

    PRELETORES: Diversos
    DATA: 2 a 4 de outubro
    LOCAL: São Paulo (SP)
    Para saber mais, clique aqui!
  • "A missão é o sim de Deus ao mundo; a participação na existência de Deus no mundo. Em nossa época, o sim de Deus ao mundo revela-se, em grande medida, no engajamento missionário da igreja no tocante às realidades de injustiça, opressão, pobreza, discriminação e violência."
    David Bosch
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