24.11.06

Teodicéia

Acho que Epicuro foi quem formulou a questão a respeito da relação entre a onipotência e a bondade de Deus. A coisa é mais ou menos assim: se Deus existe, ele é todo poderoso e é bom, pois não fosse todo-poderoso, não seria Deus, e não fosse bom, não seria digno de ser Deus. Mas se Deus é todo-poderoso e bom, então como explicar tanto sofrimento no mundo? Caso Deus seja todo-poderoso, então ele pode evitar o sofrimento, e se não o faz, é porque não é bom, e nesse caso, não é digno de ser Deus. Mas caso seja bom e queira evitar o sofrimento, e não o faz porque não consegue, então ele não é todo-poderoso, e nesse caso, também não é Deus. Escrevendo sobre a Tsunami que abalou a Ásia, o Frei Leonardo Boff resume: “Se Deus é onipotente, pode tudo. Se pode tudo porque não evitou o maremoto? Se não o evitou, é sinal de que ou não é onipotente ou não é bom”.

Considerando, portanto, que não é possível que Deus seja ao mesmo tempo bom e todo-poderoso, a lógica é que Deus é uma impossibilidade filosófica, ou se preferir, a idéia de Deus não faz sentido, e o melhor que temos a fazer é admitir que Deus não existe.

Parece que estamos diante de um dilema insolúvel. Mas Einstein nos deu uma dica preciosa. Disse que quando chegamos a um “problema insolúvel”, devemos mudar o paradigma de pensamento que o criou. O paradigma de pensamento que considera o binômio “onipotência/bondade” como ponto de partida para pensar o caráter de Deus nos deixa em apuros. Existiria, entretanto, outro paradigma de pensamento? Será que as palavras “onipotência” e “bondade” são as que melhor resumem o dilema de Deus diante do mal e do sofrimento do inocente? Há outras palavras que podem ser colocadas neste quebra-cabeça?

Este problema foi enfrentado por São Paulo, apóstolo, em seu debate com os filósofos gregos de seu tempo. A mensagem cristã era muito simples: Deus veio ao mundo e morreu crucificado. Pior do que isso: Deus foi crucificado num “jogo de empurra” entre judeus e romanos, isto é, diferentemente dos outros deuses, o Deus cristão foi morto não por deuses mais poderosos, mas por homens. Sendo Deus, jamais poderia ser morto por mãos humanas, e sendo o Deus onipotente, jamais poderia nem mesmo ser morto. Paulo, apóstolo, estava, portanto, diante de um dilema semelhante ao proposto por Epicuro: Deus era uma impossibilidade filosófica.

Foi então que os apóstolos surgiram com uma resposta tão genial que os cristãos acreditamos que foi soprada pelo Espírito Santo: antes de vir ao mundo ao encontro dos homens, Deus se esvaziou da sua onipotência[i], isto é, abriu mão do exercício de sua onipotência, e por amor[ii], deixou-se matar por eles[iii]. (Eu disse que “Deus abriu mão do exercício de sua onipotência”, bem diferente de “Deus abriu mão de sua onipotência”).

O apóstolo Paulo admitia que não era possível pensar em Deus sem considerar o binômio bondade/onipotência. Optou pela palavra amor, assim como o apóstolo João, que afirmou “Deus é amor”[iv]. Jesus de Nazaré foi Deus encarnado na forma de Amor, e não Deus encarnado na forma de Onipotência.

Isso faz todo o sentido. Um Deus que viesse ao encontro das pessoas em trajes onipotentes chegaria para se impor e reivindicar obediência irrestrita, impressionando pela sua majestade e força sem iguais. Jung Mo Sung adverte que “a contrapartida do poder é a obediência, enquanto a contrapartida do amor é a liberdade”. Também assim pensou o apóstolo Paulo, ao afirmar que o que constrange as pessoas a viver para Deus é o amor de Deus (demonstrado na morte de Jesus na cruz)[v], e nunca o poder de Deus.

Na verdade, “Deus não tinha escolha”. Ao decidir criar o ser humano à sua imagem e semelhança, deveria criá-lo livre. Desejando um relacionamento com o ser humano, deveria dar ao ser humano a liberdade de responder voluntariamente ao seu amor, sob pena de ser um tirano que arrasta para sua alcova uma donzela contrariada. Somente o amor resolveria esta equação, pois somente o amor dá liberdade para que o outro seja livre, inclusive para rejeitar o amor que se lhe quer dar.

André Comte-Sponville é um ateu confesso (sei que vou levar pedradas) que discorre a respeito do amor divino como poucos que já li. Acredita que o amor divino é um ato de diminuição, uma fraqueza, uma renúncia. Usa os argumentos de Simone Weil: “a criação é da parte de Deus um ato não de expansão de si, mas de retirada, de renúncia. Deus e todas as criaturas é menos do que Deus sozinho. Deus aceitou essa diminuição. Esvaziou de si uma parte do ser. Esvaziou-se já nesse ato de sua divindade. É por isso que João diz que o Cordeiro foi degolado já na constituição do mundo. Deus permitiu que existissem coisas diferentes Dele e valendo infinitamente menos que Ele. Pelo ato criador negou a si mesmo, como Cristo nos prescreveu nos negarmos a nós mesmos. Deus negou-se em nosso favor para nos dar a possibilidade de nos negar por Ele. As religiões que conceberam essa renúncia, essa distância voluntária, esse apagamento voluntário de Deus, sua ausência aparente e sua presença secreta aqui embaixo, essas religiões são a verdadeira religião, a tradução em diferentes línguas da grande Revelação. As religiões que representam a divindade como comandando em toda parte onde tenha o poder de fazê-lo são falsas. Mesmo que monoteístas, são idólatras” [vi].

Você já imagina onde quero chegar. Isso mesmo, entre a onipotência e a bondade de Deus existe a liberdade do homem, e o compromisso de Deus em respeitar esta liberdade. Isso ajuda a entender porque existe tanto sofrimento no mundo. O mal não procede de Deus e não é promovido ou determinado por Deus. O mal é conseqüência inevitável da liberdade humana, que teima em dar as costas para Deus e tentar fazer o mundo acontecer à sua própria maneira. Diante do mal e do sofrimento, o Deus com os homens, encarnado em Amor, também sofre, se compadece, tem suas entranhas movidas de compaixão[vii].

Mas você poderia perguntar por que razão Deus não acaba com o mal. Isso é simples: Deus não acaba com o mal porque o mal não existe, o que existe é o malvado. O mal não é uma entidade ao lado de Deus. O mal é o resultado de uma ação humana em afastar-se do Deus, sumo bem. O monoteísmo cristão afirma que há um só Deus, e que o mal é a privação da presença de Deus. Os cristãos não somos dualistas que postulamos a existência do bem e do mal. O mal é apenas a ausência do bem. Por isso, o mal não existe, o que existe é o malvado, aquele que faz surgir o mal porque se afasta de Deus, o supremo e único bem.

Ariovaldo Ramos me ensinou assim, e completou dizendo que “para acabar com o mal, Deus teria que acabar com o malvado”. Mas, sendo amor, entre acabar com o malvado e redimir o malvado, Deus escolheu sofrer enquanto redime, para não negar a si mesmo destruindo o objeto do seu amor. Por esta razão Deus “se diminui”, esvazia-se de sua onipotência, abre mão de se relacionar em termos de onipotência-obediência, e se relaciona com a humanidade com base no amor, fazendo nascer o sol sobre justos e injustos[viii], e mostrando sua bondade, dando chuva do céu e colheitas no tempo certo, concedendo sustento com fartura e um coração cheio de alegria a todos os homens[ix].

É uma pena que Epicuro não tenha lido os apóstolos cristãos, não tenha corrido no parque ao lado de Ricardo Gondim, não tenha ouvido Ariovaldo Ramos pregar, e nem tenha assistido às aulas de Jung Mo Sung.

____________________
[i] Carta aos Filipenses 2.6-8
[ii] Evangelho de João 3.16
[iii] Atos dos Apóstolos 2.23
[iv] Primeira Carta de João 4.7
[v] 2Coríntios 5.14,15
[vi] Comte-Sponville, André, Pequeno tratado das grandes virtudes, São Paulo: Martins Fontes, 1995, Capítulo 18: Amor.
[vii] Evangelho de São Mateus 9.36; 14.14
[viii] Evangelho de São Mateus 5.44,45
[ix] Atos dos Apóstolos 14.17

10 Comments:

Blogger Lou H. Mello said...

O amor ágape de Deus é tão abrangente e inclusivo que torna-se não compreensível em nosso estado de miséria malvada. Mas, você está no caminho certo. No meu caso, foi preciso um grande sofrimento para eu ajustar o amor de Deus, sua bondade e poder às minhas crenças cristãs. Mas, ando pelos mesmos patamares, hoje em dia.
Você é a segunda pessoa a citar a Simone Weil, esta semana. Parabéns.

11:46 AM  
Blogger Humberto R. de Oliveira Jr said...

Caro Ed,

Falando no popular: Que gostosura de texto!!!! hehehe

Fera, curti muito! Deus continue lhe abençoando!

Abraços

9:22 AM  
Blogger O Tempo Passa said...

Caro Ed.
Obrigado por nos brindar com este texto e por permitir que a gente "meta a colher" nos teus pensamentos.
O rabino Harold Kushner tem um interessante ponto de vista em relação ao assunto, em "Por que coisas ruins acontecem a pessoas boas?".
Eu tendo a pensar que a grandiosidade de Deus é tanta, e nossa pequenez tamanha, que não conseguimos conciliar os diferentes componentes do caráter de Deus, que nos parecem contraditórios, mas são apenas paradoxais.
E já que não alcanço a totalidade Dele, fico com Seu Amor. Minha esperança é Seu Amor.
Obrigado.

12:11 PM  
Blogger Norma said...

Por isso, um bom atalho para quem não conhece Jesus e faz essa pergunta - "Como pode Deus ser bom e permitir o mal?" - talvez seja: Deus venceu o mal em Jesus. A vitória será completa e absoluta no final dos tempos, mas o mal já está vencido "desde a fundação do mundo". E isso só tem sentido se entendemos que todo o mal que Deus ainda permite será absorvido em um quadro mais amplo, dentro de Sua vontade, "tudo cooperando para o bem" dos Seus amados.

Por isso, encontro grande dificuldade para compreender o mal dentro de um contexto de base arminiana. Porque o arminianismo pressupõe que Deus não dá conta do mal, deixando a pergunta acima sem resposta. Mas, se Deus é soberano e faz cooperar até todo mal para nosso bem, podemos descansar. A pergunta que não tem resposta é: "Mas como pode Deus ser soberano e nós ainda livres?" Eu penso que pode, pois estamos na perspectiva temporal e Ele, na eternidade. É assim que resolvo esse dilema, que teria surgido, por assim dizer, lá na criação: Deus, em Sua perfeição e eternidade, cria o tempo e criaturas para morarem nele. Como? As criaturas são livres e agem de forma livre, jamais tendo razão de questionar sua própria liberdade; mas Deus, acima do tempo, sabe de tudo. As coisas são assim, e não há como ser diferente.

12:25 PM  
Blogger Paulo Cruz (PC) said...

Olá Ed, tudo bem?

Disse ainda Simome Weil (comentando a afirmação de Ivan Karamazov, que disse que rejeitaria a idéia de Deus por causa das lágrimas de uma criança):

“Adiro completamente a este sentimento. Nenhum motivo, qualquer que seja, que me possa ser dado para compensar a lágrima dessa criança, pode fazer-me aceitar essa lágrima. Absolutamente motivo nenhum que a inteligência possa conceber. Um só motivo, não inteligível, a não ser para o amor sobrenatural: Deus o quis. E por esse motivo aceitaria tanto um mundo que fosse puro mal, como aceitaria a lágrima de uma criança”. (Simone Weil – A gravidade e a Graça)

Assim são os místicos: Dizem uma coisa, depois dizem outra, e depois outra...e nos deliciamos em lê-los, sem muito entendê-los!

Abraço,
PC

11:13 AM  
Blogger Hernan said...

Como é bom ler um texto como esse. Li-o por tabela no site do Ricardo Gondim e fico mais feliz ainda em poder comenta-lo aqui.

Um abraço.

1:16 AM  
Blogger Odimar said...

Olá Ed,
você disse: "o mal não existe, o que existe é o malvado". Quem é o malvado nas catástrofes naturais, como a Tsunami, por exemplo?

11:13 AM  
Blogger Paulo Cruz (PC) said...

Respondo: Acho que o malvado é o mesmo. Aquele que vai morar nas encostas, nas áres de mananciais, nos campos desmatados, em ilhas no meio do mar, etc.

Abraço,
PC

3:06 PM  
Blogger Unknown said...

Cara, é incrível como os evangélicos estão bebendo nos mananciais da Teologia da Libertação. Me divirto, mesmo sabendo que esta corrente já tem pelo menos uns 30 anos de existência. Mas, é isto aí. Um dia a gente tinha que abrir os olhos, enxergar. A cegueira também não o é para sempre. Escrevam: Ricardo Gondim, Ed Rene e companhia não serão mais os outros, depois de terem passado pela UMESP. Valeu!

3:39 PM  
Blogger Alternativa said...

E o que pode a liberdade humana contra um tsunami ? É muita imaginação acreditar que adão causou um tsunami !

É um crime, uma desfaçatez responder a um sofrimento com uma quimera teológica; aliás, a teologia toda é pura historinha pra boi dormir ! Não há resposta possível; façamos o possível para aguentar a Terra e chega de lero lero !!

4:15 PM  

Postar um comentário

<< Home


Ed René Kivitz
Pastor da Igreja Batista de Água Branca (São Paulo), autor e conferencista.
+ Saiba mais


LANÇAMENTO

Os artigos reunidos neste livro não são expressões de rebeldia à ortodoxia cristã, mas de inquietude diante de uma Igreja que...
+ Saiba mais


BEST-SELLER
Vivendo com propósitos apresenta a resposta cristã para o sentido da vida. Tomando como ponto de partida a afirmação de que Deus criou o homem...
+ Saiba mais


-----------------------------------------
  • BOSCH, David. Missão transformadora: mudanças de paradigmas na teologia da missão. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2002.

  • XI Semana de Estudos de Religião - Fundamentalismos: discursos e práticas

    PRELETORES: Diversos
    DATA: 2 a 4 de outubro
    LOCAL: São Paulo (SP)
    Para saber mais, clique aqui!
  • "A missão é o sim de Deus ao mundo; a participação na existência de Deus no mundo. Em nossa época, o sim de Deus ao mundo revela-se, em grande medida, no engajamento missionário da igreja no tocante às realidades de injustiça, opressão, pobreza, discriminação e violência."
    David Bosch
  • Clique aqui para conhecer minha igreja. Você é nosso convidado!

Cadastre seu e-mail:

powered by Bloglet

 

 
....Copyright © 2006 Ed René Kivitz. Todos os direitos reservados.