17.11.06

O menino e a raposinha

O menino tinha o dom especial de tratar com os bichos selvagens. Aliás, ele mesmo era meio selvagem. Andava descalço mata adentro como quem corria pelos corredores de seu próprio palácio. Não tinha medo de cobra, lobisomem e nem dos espíritos das florestas, de quem as pessoas comuns não queriam nem ouvir falar. Era amigo de todo mundo, boa praça, prestativo e gentil. Mas quem se metesse com ele descobria um leão enrustido por baixo daquela cara marota no topo do corpo franzino.

Foi por isso que um dia voltou pra casa com uma raposinha no colo. Todo mundo disse que raposa não é bicho pra ter no quintal. Raposa é escorpião com pelo, diziam. Mas o menino não se fazia de rogado. Estava acostumado a tratar com bichos selvagens. A raposinha por sua vez, se mostrava cada vez mais especial. Encarava todo mundo com um ar de superioridade e não se intimidava com os que viviam fazendo provocações para que ela se revelasse malévola e desse razão a quem dizia com desdém “você não me engana”. Era o oposto do menino. Metia medo à distância, mas quem se metia com ela via logo que não era aquele bicho papão, era apenas uma raposinha precisando de colo e fazendo pose para se defender.

Um dia o menino acordou com o braço dilacerado e ensangüentado, e tudo o que conseguiu ver antes de cair pra trás urrando de dor foi o rabo da raposinha saindo do quarto em penumbra. “Você me mordeu, você me mordeu”, chegou aos berros no quintal... A raposinha, sem entender o que estava acontecendo, olhava para o menino com ar de espanto e inocência. Recebia de volta um olhar que misturava decepção, ódio e revolta. Aquele olhar próprio dos que tiveram seu amor traído.

“Você não está vendo meu braço dilacerado pela sua bocarra?”, perguntava o menino pingando sangue. “Não estou vendo nada”, respondia a raposinha estarrecida. Num a fração de tempo ficaram naquela discussão onde a realidade se misturava com a imaginação e cada vez que o menino acusava a raposinha, mais a raposinha se indignava e se defendia com veemência e agressividade, fazendo o ódio do menino crescer. “Como você pôde fazer este mal tão grande contra mim?”... “Como você pode acreditar que eu faria isso com você?”, eram as expressões que se repetiam com palavras e frases cada vez mais sofisticadas. Até que num momento a raposinha diz “Você sonhou, você sonhou...”, achando que isso resolveria o dilema. “Sonho na sangra”, disse o menino inconformado. E assim, cada um foi para um lado, o menino e a raposinha, viver sua infelicidade e sua dor, cheios da razão que somente os bichos selvagens sabem ter.

Viveram assim por um longo tempo. O menino perdeu o gosto de correr pelas florestas e já nem conseguia ouvir direito a música do vento nas matas. A raposinha seguiu seu destino enfrentando tudo e todos, fazendo o possível e o impossível para sobreviver à pecha de escorpião com pelo.

Mas o menino era especial. Um dia, ouviu o Grande Espírito perguntar o que lhe valia mais, a certeza de ser traído ou o amor da raposinha, a exigência de reparo da ferida aberta ou a alegria da comunhão da raposinha, o braço ou a raposinha. Caiu envergonhada por ter sido aprisionado pelo ódio e o ressentimento, ele que sempre fora capaz de ser amigo dos selvagens, de repente se viu presa do mais selvagem dos bichos, seu próprio coração.

Enquanto isso, o Grande Espírito falava também com a raposinha. “Você acredita mesmo que ele sonhou? Então sabe que ninguém sonha sem razão. Na vida, não existe diferença entre dor de sonho e dor de verdade. O que lhe importa mais, fazer valer sua razão ou voltar à comunhão, provar inocência ou celebrar o amor?”. A raposinha abaixou a cabeça envergonhada, admitindo que não era uma raposinha, mas um bicho selvagem que devia se deixar amansar na humildade própria de quem foi alvo de amor sem reservas.

Foi então que um dia se viu a raposinha fazendo um curativo no braço do menino. A raposinha enfaixava um braço que acreditava são, cuidando zelar do coração do menino. O menino olhava com carinho a raposinha diligente, oferecendo um braço que doía bastante, mas com um coração tão saudável como jamais experimentara.


Ed René Kivitz
Pastor da Igreja Batista de Água Branca (São Paulo), autor e conferencista.
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